quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Opinião - "A Desumanização", Valter Hugo Mãe

Edição: 2013
Páginas: 238
ISBN: 9789720044945

Goodreads: mais informação aqui.


Sinopse


"Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas."


Passado nos recônditos fiordes islandeses, este romance é a voz de uma menina diferente que nos conta o que sobra depois de perder a irmã gémea. Um livro de profunda delicadeza em que a disciplina da tristeza não impede uma certa redenção e o permanente assombro da beleza.

O livro mais plástico de Valter Hugo Mãe. Um livro de ver. Uma utopia de purificar a experiência difícil e maravilhosa de se estar vivo."



Opinião

Valter Hugo Mãe era um nome que me andava nos ouvidos há já algum tempo, a fama do seu estilo de escrita precedendo-o. Por isso, quando foi lançado “A Desumanização”, e vi uma reportagem sobre o tempo que o autor passou na Islândia na sua pesquisa para o romance, não hesitei em trazê-lo para casa – onde tem estado, na minha estante, à espera da sua vez de ser lido. Confesso que o fiz nesta altura pela aproximação da Feira do Livro do Porto, onde creio que o autor estará presente.

O livro divide-se em duas partes, cada uma delas separada do resto do tempo por um evento marcante para Halla, a narradora e protagonista. Conhecemo-la quando a sua irmã, Sigridur, morre de uma doença desconhecida. Halla e Sigridur não são apenas irmãs, nem sequer apenas gémeas idênticas; são metade de uma mesma mente, quase de um mesmo corpo – depois de Sigridur ir a plantar, como explicam a Halla, esta sente-se aconchegada pela terra à sua volta quando pensa em Sigridur durante a noite, ao lado da camisola da irmã que ocupa ainda metade da cama.

Halla é obrigada a viver só, sentindo que na verdade a melhor parte de si partiu também. A sua mãe, enlouquecida de dor, fecha-se em si mesma, repudia-a; o seu pai, sábio como sempre foi, tenta fazê-la entender o mundo através dos seus poemas. Mas, apesar de Sigridur ter passado a ocupar a dimensão dos mortos, a vida continua, e para a pequena Halla o tempo parece passar mais depressa do que para os demais – cresce demasiado rapidamente, ora por correr sobre a linha do tempo, ora sendo arrastada pelas pessoas e acontecimentos que a rodeiam. Na segunda parte senti, muito marcadamente, que Halla passara a ser uma mulher, madura muito para além da sua idade.

À medida que avança no tempo e na ciência, Halla vai guardando e descobrindo segredos, numa história que consegue surpreender verdadeiramente o leitor, bem como torná-lo um aliado incondicional da protagonista. Apesar de ser a rapariga que seguirmos mais de perto, conseguimos compreender as outras personagens em profundidade, e senti-las próximas.

A escrita deste romance é verdadeiramente encantadora. O ritmo, aliado à própria história, trouxeram-me à memória o “Memorial do Convento”, tão cheio de acontecimentos e ao mesmo tempo tão melancólico; conseguimos também ver o paralelismo do homem a quem falta parte de si, perdida algures no tempo, e da mulher que se encarrega de ver por ele, ambos ligados por um amor que transcende o entendimento de outros. Mas não quero com isto assustar potenciais leitores que não simpatizem com o estilo de Saramago – “A Desumanização” está escrito de uma forma mais simples, mas não menos bela. Valter Hugo Mãe faz uma colagem de palavras como não estamos habituados a ler, mas que se aproxima mais da sintaxe dos nossos pensamentos, e reinventa o seu significado, tendo passagens que eram tão só poemas em prosa. Toda a narrativa é um poema da vida da vida de Halla e das suas pessoas.

Através da sua voz de criança, e daqueles que a rodeiam, Halla leva-nos a reflectir sobre a morte e a perda, temas que, pela nossa própria condição, tocarão qualquer leitor; sobre o amor, e de como este se pode manifestar; sobre a nossa relação com a Terra e a natureza; sobre a solidão, questionando o quanto o outro pode chegar a nós; sobre a nossa própria existência e do que nos rodeia, e de como as palavras a podem realizar ou destruir; sobre Deus, a sua forma e vontade; sobre como tudo isto se interliga e como podemos (ou não) compreendê-lo (compreender-nos) verdadeiramente.


2 comentários :

  1. Olá,

    Excelente comentário sem duvida, de forma resumida um livro que está mais que recomendado :)

    Registado ;)

    Bjs

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    Respostas
    1. Olá Fiacha!

      É mesmo um livro a não deixar passar! Espero que venhas a gostar de o ler também :)

      Beijinho e boas viagens!
      Bárbara

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