segunda-feira, 20 de abril de 2015

No Piso 9 com... José Saramago

Há livros maravilhosos, com histórias incríveis, nascidas de uma imaginação para lá de muito fértil e depois há outro nível: José Saramago; as suas obras são sempre dotadas de uma escrita magistralmente concebida, pensada ao pormenor, onde cada palavra abre caminho à seguinte, onde cada frase é muito mais do que nela se lê, onde tudo se conjuga harmoniosamente e com tal musicalidade que somos embalados para dentro das páginas dos seus  livros.

Por isso,  vamos inaugurar da melhor forma o Piso 9, deixando-vos 9 sugestões da obra do nosso Prémio Nobel da Literatura, José Saramago.



Ensaio Sobre a Cegueira

Saramago é mestre em expor o pior e o melhor do Homem, demonstrando que andam sempre de mãos dadas, sendo um inseparável do outro. Durante a leitura deste livro podem ser necessárias várias pausas, fechar o livro e voltar a ele uns dias depois. Ensaio Sobre a Cegueira é brilhante! E tão extraordinariamente visual que recomendamos o filme apenas para os mais corajosos!

“Ainda está para nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

O Ensaio Sobre a Cegueira foi brilhantemente adaptado ao Cinema em 2008. Aqui fica o trailer, para quem não viu o filme e quiser dar uma espreitadela.
 




As Intermitências da Morte 
 

N'As Intermitências da Morte, Saramago testa mais uma vez a condição humana através de uma implausível irrealidade: a morte deixa de matar. É a greve das greves, e Saramago expõe com mestria as suas consequências sociais e políticas, mostrando ao leitor como o Homem é, através da forma como pensa, sente e age perante uma perda que é tão absoluta como incompleta. Nesta obra, Saramago alia uma crua e realista análise social com a personificação da própria Morte que, com poderes sobrenaturais, dá corpo (literamente) a uma tocante história de amor.
   
“Aprende, pensava, aprende de uma vez, pedaço de estúpido, portaste-te como um perfeito imbecil, puseste os significados que desejavas em palavras que afinal de contas tinham outros sentidos, e mesmo esses não os conheces nem conhecerás, acreditaste em sorrisos que não passavam de meras e deliberadas contracções musculares, esqueceste-te de que levas quinhentos anos às costas apesar de caridosamente to haverem recordado, e agora eis-te aí, como um trapo, deitado na cama onde esperavas recebê-la, enquanto ela se está rindo da triste figura que fizeste e da tua incurável parvoíce!”


Ensaio Sobre a Lucidez

Quem pega neste livro na esperança de esbarrar na grandiosidade do Ensaio Sobre A Cegueira fica imensamente decepcionado. Se a primeira metade do livro prende pelo mistério, a segunda, na tentativa forçada de ser uma sequela do Ensaio Sobre A Cegueira, perde qualidade.

Um dia vulgar de eleições termina num resultado imprevisto: uma maioria de votos em branco. E esta inocente manifestação, este desabafo, esta indignação para com os políticos dos partidos da direita, da esquerda e do meio, deixa os governantes inseguros. Sentindo-se ameaçados, procuram a todo o custo descobrir a génese da ideia peregrina do voto em branco massivo. Espiando, enganando e torturando fazem sofrer alguns dos que viveram os horrores da cegueira branca.

O grande inimigo desta obra é sem dúvida a elevada fasquia e as grandes expectativas deixadas pelo seu antecessor. Ainda assim, este romance constitui uma crítica mordaz à Democracia levantando a grande questão do papel dos cidadãos, dos eleitores. Será que têm um papel real? Lúcido será quem se questiona.
 
“É o que as palavras simples têm de simpático, não sabem enganar.” 

 
Caim

Em Caim Saramago deixa transparecer que não era tão ateu como afirmava ser, mas apenas acreditava num Deus muito imperfeito com quem estava profundamente zangado. Seguindo a personagem principal, Caim, a narrativa expõe vários episódios bíblicos mas ridicularizando-os, sem nunca mentir, mas mostrando uma verdade como quem diz “vejam a areia que vos atiraram aos olhos”. Para pessoas mais sensíveis em assuntos de cariz religioso esta leitura não é recomendável, pois certamente página sim página sim iriam bradar aos céus contra Saramago. Não deixa de ser um livro diferente, controverso, polémico e que vale a pena pelo final curioso.

“O caminho do engano nasce estreito, mas sempre encontrará quem esteja disposto a alargá-lo.
 

A Jangada de Pedra
 
Metáforas políticas à parte, que tornaram entediantes quase capítulos inteiros, A Jangada De Pedra é uma belíssima história sobre pessoas. Com personagens peculiares e diálogos de inigualável beleza, Saramago leva-nos mar adentro na viagem da grande jangada de pedra que é a Península Ibérica. 
 
Deixem-se encantar por Joana Carda que ao riscar o chão com uma vara de negrilho se sente culpada pela separação da Península Ibérica da restante Europa, por Maria Guavaira que encontrou em sua casa uma meia de lã azul que não consegue terminar de desfazer, por Joaquim Sassa que lançou uma enorme pedra ao mar a uma distância impossível para o seu físico, por José Anaiço perseguido por uma bando de estorninhos, por Pedro Orce que sente uma contínua vibração vinda do solo, como se pudesse perceber as oscilações provocadas pelo movimento de Portugal e Espanha. E finalmente por Constante, o Cão, que hesitante entre Espanha e França opta pela península quando se abre a primeira fenda no chão e junta-se ao grupo, tornando-se companheiro fiel de Pedro Orce.

“No quarto ao lado dormiam cansados os amantes, nos braços um do outro, maravilha que infelizmente não pode durar sempre, e é natural, um corpo é este corpo e não aquele, um corpo tem um princípio e um fim, começa na pele e acaba nela, o que está dentro pertence-lhe, mas precisa de sossego, independência, autonomia de funcionamento, dormir abraçados exige uma harmonia de encaixes que o sono de cada um desajusta, acorda-se com o braço dormente, um cotovelo fincado nas costelas, e então dizemos baixinho, reunindo toda a ternura possível, Meu amor chega-te para lá (...) 

A Jangada de Pedra foi  adaptada ao Cinema em 2002 .Podem consultar mais informações sobre o filme Aqui.


O Conto da Ilha Desconhecida
 

Podem ver a Opinião da Rosana Aqui.

 "Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar."

 
O Homem Duplicado 
 

 Podem ver a Opinião da Tomé Aqui e da Sofia Aqui.
 
Diz-se que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve ser aquele que leva a não suportar a igualdade do outro, e provavelmente será ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez absoluta.

 
Memorial do convento
 
Memorial do Convento, uma obra incontornável quando pensamos em Saramago, reúne um improvável trio de personagens que, de uma forma diferente, nos transmite que o amor e o sonho não são padronizáveis, que o impossível é relativo e frequentemente designa apenas algo difícil de alcançar quando a nossa força não almeja ser mais do que humana.
Baltasar sete-sóis, maneta, e Blimunda sete-luas, uma vidente muito especial, protagonizam a trama amorosa deste Romance Histórico sem par e o Padre Bartolomeu Lourenço um louco, um pássaro preso no corpo de um homem, constituem tríade sui generis que nos consegue embalar numa trama que para muitos é de difícil leitura e entendimento.
Mas esta grande obra não se fica por aqui e Saramago presenteia-nos com a sua habitual sátira às ideologias sociais e religiosas, usando como pano de fundo a corte do século XVIII e descrevendo habilmente um retrato caricato da construção do convento de Mafra, sempre debaixo do megalómano olhar do Rei.
“Quando me dás a mão, quando te encostas a mim, quando me apertas, não preciso ver-te por dentro.”
 

 
Carta a Josefa, minha avó (1968)

E terminamos com a crónica Carta a Josefa, minha avó, publicada no ano de 1968, no jornal A Capital, de Lisboa, tendo sido incluída, anos mais tarde, no livro Deste Mundo e do Outro. Deixem-se deslumbrar com um texto tão simples e tão simplesmente belo.

“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»


É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.”

4 comentários :

  1. Nunca consegui ler nada dele :( O Memorial ficou no início. Confesso que tenho alguma curiosidade com o ensaio sobre a cegueira.

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    1. Olá Ivonne!

      O Ensaio Sobre a Cegueira é só o meu livro preferido de todo o sempre, dá-lhe uma oportunidade! Mas aviso-te, é possível que te faça perder o sono uma ou duas noites! Memorial do Convento não é um bom livro para começar Saramago, embora também goste imenso, percebo o que leva as pessoas a desistir :/

      Boas viagens,
      Tomé

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  2. Sou fã desse cara, mesmo só tendo lido dois livros. Quero muito ler Ensaio Sobre a Cegueira, apenas vi o filme (que é muito bom).

    Beijos!
    livrosdawis.blogspot.com.br

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    1. Olá Wislanny :)

      Dois livros são suficientes para se ficar fã de Saramago :D Até porque a maioria das pessoas ou ama ou odeia o que ele escreve, e se já te apaixonas te pela sua escrita tenho a certeza que vais gostar das suas outras obras. O Ensaio Sobre a Cegueira é uma leitura muito pesada emocionalmente mas é um livro brilhante e que vale muito a pena ;) Também vi o filme depois de ler o livro, e está muito muito fiel!

      Boas viagens,
      Tomé

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