domingo, 12 de abril de 2015

O Nosso Obrigada ao Pedro Cipriano


 

Sobre o autor:

Pedro Cipriano gosta de escrever de tudo um pouco. É difícil definir o género literário no qual se encaixa mais, uma vez que escreve desde ficção histórica e policiais, passando por ficção científica até ensaios. Faz parte do grupo Fantasy & Co e fundou a Editorial Divergência. Profissionalmente tem doutoramento em Física experimental e dedica-se a tempo inteiro à editora, à escrita e às artes marciais.
 
 
 
 
Pedro Cipriano fez-nos companhia no mês de Janeiro, acabados de entrar no ano de 2015, com o seu Caderno Vermelho! Recordamos aqui alguns dos pontos altos do fim-de-semana:

Pensamentos do Dia: 1, 2, 3

E para o nosso aniversário, Pedro Cipriano presenteou-nos e aos nossos leitores com um texto num registo bem diferente, partilhando connosco um pouco da sua versatilidade!


Os Cadáveres

Sou um homem morto. Respiro, o meu coração bate e ainda raciocino. Apesar disso, sou um homem morto. Aperto a arma que trago por dentro do casaco e dou alguns passos em frente. Os ouvidos zumbem. Não vale a pena sequer ir buscar o carro. Não iria funcionar. Acho que desloquei o ombro. É a menor das minhas preocupações. Aliás, um homem morto não tem preocupações. Passo a mão pela testa e vejo-a coberta de sangue. Só há uma coisa que gostaria de fazer. Mais que gostar, tenho de o fazer. Outras pessoas arrastam-se pela rua devastada. Outras pessoas não, cadáveres tal como eu. Talvez gritem. Parece-me que sim, não tenho meio de saber. O maldito zumbido continua. Vejo-os agitar os braços, enquanto correm à procura de ajuda. Alguns não se mexem. Estão apenas um pouco mais mortos que eu. A ajuda não virá. Estamos por nossa conta. E há um amaldiçoado vento, que sopra na pior direcção. Era polícia, enquanto estava vivo. O meu dever neste caso seria auxiliar os feridos e impedir o caos. Não vale a pena. No passeio jaz uma mulher de meia-idade com os membros torcidos em ângulos impossíveis. Há uma criança empalada num sinal de transito. Vomitaria se ainda tivesse algo no estômago. Há quem olhe para o meu uniforme desfeito com um raio de esperança no olhar. Incautos. O que fui antes da minha morte não vos pode valer. Passo após passo, vou-me aproximando do meu destino. As piores lesões são as queimaduras que desfiguram rostos. Há pequenos fogos um pouco por todo o lado. Vi roupas incendiarem-se nos corpos dos seus donos. As folhas de papel arderam também. E, claro, a pele. Vidros partidos espalhados por todo o lado. Perdi por completo o uso da audição. Nunca mais vou poder ouvir o riso da minha esposa. Ridículo! Mesmo que os meus ouvidos ainda funcionassem, não irei de escutar mais que gritos e choro. Tanto entulho. Um corpo em convulsões com numerosos pedaços de vidro espetados na face. Os que tiveram uma morte instantânea foram os mais afortunados. Sinto as pernas a fraquejar. Não posso parar, nem desistir. Uma eternidade de descanso me espera em breve. Os edifícios ruíram. Foram obliterados. Humanos foram projectados contra os objectos. E objectos foram projectados contra humanos. Sem distinção. Sem piedade. Partiram-se em vários pedaços. Quebraram-se. Foram os mais afortunados. Outros ficaram soterrados. Não consegui ouvir os gritos deles, mas consigo imaginá-los. E não pude fazer nada por eles. Ninguém pode. Eu não posso fazer nada por ninguém. Mas há uma coisa que tenho de fazer. Sinto líquido quente na boca. Cuspo sangue. Não interessa, estou morto. Vejo um par de pernas debaixo de um monte de entulho. Há uma viatura enfiada numa casa. Há um corpo esmagado entre a parede e o automóvel. Estou a chegar à minha rua. Aqui nem todas as casas ruíram. Há um grupo de pessoas que tenta ajudar outra. Ingénuos. Não vêem o vento? É tarde demais. Não interessa, somos todos cadáveres, só que alguns ainda não sabem disso. Eu sei. Há umas horas atrás, se me perguntassem se tinha medo da morte, eu afirmaria, sem hesitar, que sim. Mas isso foi antes de eu morrer. Agora, a morte é a melhor coisa que me poderia acontecer. E não vai tardar que aconteça. A luz. A grande luz. Não vi a grande luz. Gostaria de ter visto a grande luz. Tudo teria sido mais fácil. Mais imediato. Pensei nos meus dois filhos. A esta hora já deveriam estar em casa. Horas. Um morto não conta horas. O tempo deixou de existir. Estes são apenas instantes com os quais fui amaldiçoado. A casa ainda está de pé. Bem, quase toda. O pátio foi esmagado e a varanda arrancada. Já não tem janelas. As forças faltam-me. Sou cada vez mais cadáver. Somos todos. Entrei pela porta escancarada. Atravesso o corredor devastado. Não preciso de procurar, sei que estão na cozinha. Ao atravessar o vão, vejo que estava certo. Já nada me pode surpreender. O que foi o meu amor em vida olha-me e um sorriso trespassa-lhe o rosto. O meu coração contrai-se. Por favor, não tornes tudo mais difícil. Ela está sentada no chão e abraça a minha filha. As queimaduras de ambas são extensas. Há lágrimas. Vejo que sofrem. Claro que compreendem o que aconteceu. Quem poderia não compreender? O mais novo está no chão. Respira com dificuldade. Um pedaço de madeira alojou-se no ventre. Há compressas embebidas em líquido sobre a mesa. Tentativas fúteis. Ela diz-me algo. E a mais pequena também. Não quero lembrar-me do nome dela. Não quero lembrar do nome de ninguém. Não respondo. A minha expressão mantêm-se. Uma expressão de morto. Um morto que aceita aquilo que é. Eles ainda não aceitaram. Não pensei que fosse tão difícil. No entanto, é a coisa certa a fazer. Será que não compreendem? Os olhares dizem-me que não. Os lábios movem-se de novo. Não entendo, não quero entender. Não respondo. A brisa que outrora nos acariciou a pele molesta-nos a cada momento. Maldito vento. Amaldiçoada luz. Infeliz momento em nascemos. Não vale a pena esperar mais. Meto a mão dentro do casaco e empunho a arma. Sou recebido com um olhar de surpresa e medo. Um disparo. Ela cai com a cara desfeita. A garota começa a gritar. Outro disparo. Uma mancha de sangue, ossos, massa encefálica e cabelos espalha-se pelo chão. Mais um disparo. O mais novo deixou de sofrer. Desde a grande luz não passou mais de um instante. Encosto a arma à têmpora. Sou um homem morto.



O nosso muito obrigada a Pedro Cipriano! Que tenha um futuro repleto de sucessos!

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