domingo, 4 de agosto de 2019

Opinião " a máquina de fazer espanhóis", de Valter Hugo Mãe

Sinopse

a máquina de fazer espanhóis é um dos mais importantes romances contemporâneos. Surpreendente retrato da vida dos velhos, este livro fala intimamente dos fantasmas da portugalidade e da candura que, afinal, existe mesmo nos momentos mais tristes.

A vida de um barbeiro reformado é o modo de ilustrar os conceitos de família e solidão, amizade e compromisso.

Este é um livro delicadíssimo, corajoso e inesquecível.









Opinião

a máquina de fazer espanhóis constituiu a minha maravilhosa estreia com o escritor Valter Hugo Mãe. Tinha para este romance grandes expectativas porque me havia sido recomendado com grande fervor e emoção, e sempre me comove quando alguém revela sentimentos tão fortes ao falar de livros. Eventualmente tanto tornei público o meu desejo de ler este livro (e a minha recusa em comprar mais livros!) que acabaram por mo oferecer. (Yeii!!) 

Começo por dizer que as minhas expectativas foram largamente correspondidas. a máquina de fazer espanhóis é um livro triste mas necessário, uma lente de aumento sobre a perda e sobre a vida depois da perda, sobre as pequenas conquistas quando já não nos achamos lá grandes conquistadores. 

Valter Hugo apresenta-nos um jovem de 83 anos, António Silva, um português tão vulgar quanto o seu nome, que se vê enclausurado no Lar da Feliz Idade após a morte da sua amada Laura com quem havia partilhado quase toda a sua vida. O senhor Silva chega ao lar depletado de toda a sua anterior existência, como demais sempre acontece a quem subitamente se vê sem metade do que é. Revoltado e profundamente infeliz vive dias de tormento na sua nova morada. Além da perda de Laura, vê-se face a uma solidão que desconhecia, longe dos seus e para os quais sempre viveu, sente-se inferior pelas suas limitações e dependências, vive entre a lucidez e o estado confusional, toldado pelas debilidades próprias da idade. Sente até que a sua existência não é mais merecedora de qualquer espécie de felicidade, nem de um raio de sol que seja, seria uma afronta qualquer alegria na ausência da Laura. Mas para sua infelicidade o sol continuou a nascer todos os dias aquecendo o pátio do Feliz Idade, onde o Senhor Silva conheceu outros sui generis residentes, com os quais criou uma pequena irmandade, tornando assim muito mais leve a agoniante espera pelo derradeiro fim. 


Pode dar-se o caso deste livro não ser tão bom como eu o considero, na verdade, há em mim muita empatia para com livros sobre a perda e sobre a morte, pois sempre foram um refúgio quando precisei de lidar com tristezas dessa ordem de grandeza. Se não querem sentir-se tristes não leiam a máquina de fazer espanhóis, pois Valter Hugo Mãe, numa mestria comovente, faz-nos sentir a dor do senhor Silva, uma dor que nos assombra a cada página, uma revolta por sentirmos que ele não merece acabar assim e que nos faz lembrar que todos vamos acabar assim. É como se umas pequenas mãozinhas saíssem das páginas do livro e puxassem a nossa cabeça para mais perto do sofrimento do protagonista, e ficamos abatidos por uma mágoa arrebatadora que tomamos como nossa. 

Valter Hugo escreve de forma tão genuína e factual, que parece que estamos a espreitar por uma janela do Lar da Feliz Idade, vendo as peripécias e os desgostos dos seus residentes, e conta-nos tudo de uma forma capaz de rapidamente nos fazer passar de um rasgado sorriso para uma gorda lágrima. 

Além da narrativa óbvia, das páginas de saudade, amor e amizade, o escritor vai atirando ao leitor umas sementes, deixando-o à vontade para as germinar e ler entre as entrelinhas a crítica social, as questões da identidade, do existencialismo e da fé, os efeitos nocivos de um fascismo que não está assim tão distante e que ainda faz sentir as suas sequelas. 

Quanto à escrita de Valter Hugo Mãe, sempre em minúsculas e sem discurso directo, se em alguns momentos me foi indiferente noutros atrapalhou-me e fez-me reler páginas inteiras. O que por vezes também me acontece com livros de Saramago, defeito meu, portanto. De resto, é uma escrita musical, cuidada, mas que soube pôr-se ao nível dos personagens. É em suma, um romance espantosamente bem escrito e que em muitos momentos me fez pensar que merece uma segunda leitura só para apreciar cada frase em detalhe sem a pressa de saber como acaba a história. 

Apesar de tudo, não deixa de haver um elogio à nossa capacidade de nos reinventarmos e nos superarmos, de sermos resilientes mesmo quando não sabemos o que é a resiliência. 

Termino com um excerto de a máquina de fazer espanhóis, poderia ter escolhido imensas outras passagens, mas esta foi a que me deixou no abismo da lágrima fugitiva. 

“quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversário, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome, ou mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo.”


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