terça-feira, 14 de abril de 2015

O Nosso Obrigada à Inês Botelho

Sobre o autor:

"Inês Botelho nasceu em Vila Nova de Gaia, em Agosto de 1986. Licenciada  em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, iniciou em 2009 um Mestrado em Estudos Anglo-Americanos. Tem também o 8.º grau de Piano e Formação Musical. É autora da trilogia de fantástico O Ceptro de Aerzis, composta por A Filha dos Mundos (2003), A Senhora da Noite e das Brumas (2004) e A Rainha das Terras da Luz (2005). Publicou ainda o romance Prelúdio (2007)."

Site da autora:  www.inesbotelho.com


Inês Botelho fez-nos companhia no mês de Agosto com o seu "O Passado que Seremos"! Recordamos aqui alguns dos pontos altos do fim-de-semana:

Entrevista: 1,2
Pensamentos do Dia: 1, 2, 3
Opinião de O Passado que Seremos


Aqui fica um excerto de “O Passado que Seremos”, uma das cenas favoritas da autora!


Excerto : 

No hospital. Ficaras lá em observação. Uma febre mais malandra, dissera-me o pai. O bigode farfalhudo lançava-lhe alguns pêlos negros e espigados para os lábios finos. Achei-o tão pequeno quanto eu, muito frágil, peças talvez de uma porcelana partida a esforçarem-se por continuarem unidas e prolongarem a imagem do vaso. A mão roçava-me os cabelos, afagava-me uma face, o queixo, o pescoço, repetia o gesto calmante a convencer-me.

Tive medo, mãe. Pela primeira vez desde que me lembro essa sensação súbita da espinha abocanhada, ferrada e sacudida, as patas traseiras da fera como tenazes no meu crânio, a comprimirem. Fiz o que farias; o que imaginava que farias.

Fingi dormir para que o pai se deitasse e caísse no sono. Devo ter-me deixado engodar pela farsa porque quando abri os olhos a casa afogara-se em vácuo. Só a luzinha de presença quadrangular e vermelha impedia a total escuridão. Ignorei as pantufas e corri de meias até à janela. Não tropecei nem caí.Conhecia bem o trajecto. Agarrei a fita da persiana e puxei. O mecanismo roncou no negrume, demasiado ruidoso, um estrondo bombástico. Parei à escuta. O silêncio sepulcral anterior. Se tens de o fazer, fá-lo de uma vez só. Puxei. Plantas dos pés espalmadas contra o soalho, pontas de encontro ao rodapé, peso todo nos calcanhares, mãos rasgadas pela fita dura e listada, tronco ao alto, encurvado, agachado, um marinheiro a içar a vela. Precisei de mais dois movimentos iguais para o exterior ficar a descoberto, mais barulho e força. O pai não despertou.

Era Inverno e alguma chuva indistinta molhara o passeio, no ar sentia-se chumbo. Detive-me, maravilhada e receosa. Estavam ali as tuas casas-fantasma, as construções nocturnas com olhos e bocas que nos devoravam. Nas portas dos prédios em frente, os vidros de riscas opacas e transparentes pareciam-me dentes. Os olhos quadrados de pálpebras brancas eram mais robóticos do que sobrenaturais, mas não menos assustadores. Podiam abrir-se, sabia-o, e aos poucos, enquanto me aproximava mais e mais da janela fria, compreendi o que estaria do outro lado. Quando as lamelas de plástico desaparecessem, não haveria bruxas ou vampiros a esticarem as unhas podres para me alcançarem, nenhum bicho nojento se me lançaria à cara. Em vez disso estariam lá pessoas, rostos e corpos como o meu, com olhos e bocas prontos a verem-me, a perguntarem que figura ridícula ali permanecia. Aí, mãe, vislumbrei o que é ser julgada. Mas não o senti; não ainda. Era demasiado tarde para noctívagos e demasiado cedo para madrugadores. As persianas permaneceriam corridas. Levei os olhos às nuvens, às réstias esfumadas e diáfanas dessa noite, ao granulado azul-escuro e tempestuoso que as rodeava, às estrelas, até ela.

Lua.

Uni as mãos com os dedos entrelaçados e apoiei os cotovelos no parapeito. Fixei-te de novo. Começavam a amolgar-te. Notava-se um semicírculo sobre a testa, um discreto chapéu invisível. Fechei os olhos e comprimi as mãos, pronta a ingressar num rito que jamais efectuara, mas que observara variadas vezes na televisão, em quadros e até na escola.

Recordo o choque dos dedos, a intensidade do aperto a eliminar pele e carne, deixando sentir os ossos encaixados uns nos outros, a pressão a gerar dor, a obrigar as palmas a afastarem-se, a arquearem côncavas, os ouvidos ensurdecidos, os músculos do pescoço a endurecer. Rezei.

Rezei-te com ímpeto um mantra infantil e absurdo, um poema desconexo, uma algaraviada algures entre adulteração dos cânticos transmitidos ao domingo de manhã e imitação das rimas que a minha mãe criava. Pedi-te repetidamente um favor simples: vela por ela. Lua, conselheira, bendita sois vós entre a noite, vela pela minha mãe, rogai por ela, agora e sempre, seja feita a vossa vontade, e que esta seja a tua vontade, protege-a, fá-la regressar depressa e bem, a salvo, para mim e para nós, por caminhos conhecidos e desconhecidos, perdoai-lhe qualquer ofensa e livrai-a do mal, ámen. Uma reinvenção, nova fórmula. Vela por ela. Outros ditos, as palavras pensadas depressa e engasgadas, lábios a moverem -se sem deixarem escapar o som. Vela, vela por ela, por favor, por favor. Mãos
cada vez mais espremidas, pulsos quase a quebrar. Por ela, por favor.

Abri os olhos e encarei-te. Envolvias-me. Os olhos descaíam-te compreensivos, a boca plácida era-me solidária. Longe, inalcançável, dizias-me sim. Cintilavas, teu corpo de rosto a afirmar-se favorável. Podia regressar ao sono, o assunto pertencia-te, tudo ficaria bem. Enviar-me-ias os sonhos, e se fossem feios ou sinistros seriam apenas o pequeno sacrifício que me exigias. Podia ir. Nada havia a temer.

Dormi tranquila.


 
Mentiste, lua. Acuso-te. Mentiste.
Sorriste ante a presa, foi tudo o que fizeste. Quantos antes de mim? Diz -me.Quantos? Quantos te rogaram ajuda e a quantos iludiste? Quantos os devorados? Exijo-te.
Sou patética. Mentiste...

Inês Botelho
O passado que seremos (pág. 34-37)


O nosso muito obrigada à Inês Botelho! Que tenha um futuro repleto de sucessos!

Sem comentários :

Enviar um comentário