"Os cidadãos do mundo inteiro são chamados a tomar uma decisão por uma entidade desconhecida. Têm de escolher um sentido apenas, «a saber», pode ler-se na misteriosa mensagem, «visão, audição, olfacto, tacto, paladar, com exclusão do apelidado sexto sentido, dado que, neste último caso, é o sentido que escolhe o portador, em caso algum podendo ocorrer o inverso». Receando o impacto da escolha livre na organização da sociedade, o governo decide obrigar os cidadãos eleitores a escolherem o sentido determinado em conselho de ministros, sob pena de penalização no rendimento, chamando as pessoas, em nome da nação, ao exercício de um dever colectivo de reorganização após a «extracção dos sentidos». Perante a ordem do governo, os partidos da oposição apresentam moções de censura e os auto-apelidados «guerrilheiros da liberdade» formam «brigadas dos sentidos», ainda que acabando estas por «forçar as pessoas a serem livres». Três personagens principais entrecruzam-se na história, um primeiro-ministro, um guerrilheiro da liberdade e uma mãe, partilhando, de algum modo, sentimentos de dever e de vigilância constante. Após a instituição de novos hábitos, ajustados à nova «ordem de sentidos», o primeiro-ministro depara-se com um inusitado e perturbador pedido do país vizinho, em nome de um antigo acordo a que está vinculado."
Opinião
Rute Simões Ribeiro, autora do Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da
Vontade), finalista do Prémio LeYa
2015, teve a amabilidade de me convidar a ler esta sua obra primogénita. E,
por isso, começo por agradecer-lhe ter feito chegar até mim uma leitura ímpar, incategorizável
em género, e demasiado boa para passar despercebida, que merece muito mais
visibilidade que aquela inerente à condição de ser uma edição de autor.
Avançando esta nota introdutória,
Rute apresenta-nos um insólito cenário no qual todos os cidadãos se veem forçados,
após receberem uma enigmática mensagem de uma ainda mais enigmática entidade, a
escolher um dos cinco sentidos de que são possuidores. (A originalidade do
argumento é incontestável, embora me tenha trazido à lembrança o filme Perfect
Sense de 2011, do qual a autora pode até nem ter ouvido falar!) Sendo
que já o título deste romance evocava alguma influência Saramagueana, esta
premissa sui generis é o início de várias
similaridades com a obra do nosso Nobel. Saramago presenteia-nos sempre com acontecimentos
excepcionais, e este livro parte, também ele, de um acontecimento excepcional, e
tem um clima muito semelhante àquele d’As
Intermitências da Morte. Face a uma mudança na sociedade, no caso do Ensaio sobre o Dever, a perda de sentidos,
no caso d’As Intermitências da Morte,
uma Morte que resolve fazer greve, ambas as narrativas acabam por descrever o
desenrolar da resposta possível ao impossível, a reestruturação da sociedade e
do quotidiano que todos os dias tomamos por certo e inabalável.
Temendo as consequências de uma
escolha livre por parte dos cidadãos, o governo decide obrigá-los a escolherem
o sentido que os ajudará a manter o bom funcionamento da comunidade. A partir
daqui percebemos facilmente que a autora, de uma forma muito inteligente e exímia,
vai fazendo um escrutínio delicioso e repleto de humor a esta tão bem-aventurada
democracia em que vivemos, este sistema que tanta voz dá ao povo e que valoriza
solenemente o sacrifício singular quando valores mais altos – o bem comum – se
levantam. À medida que as páginas vão avançando sentimo-nos a esfregar os olhos,
na tentativa de limpar a areia que vamos deixando que nos atirem para lá. Rute leva-nos
numa viagem de perguntas difíceis, faz-nos questionar esta espécie de liberdade
dentro de redomas a que nos vamos acomodando, os ténues limites dos poderes da
classe política e as artimanhas governativas usadas para os contornarem.
Habitualmente a resposta ao inesperado
e ao extremo traduz-se num exacerbar daquilo que temos de bom ou de mau. A
autora preferiu dar um lugar privilegiado ao cidadão comum conferindo-lhe a
capacidade de, com os seus semelhantes, encontrar formas de suprir a perda do
sentir, enaltecendo e elogiando aquilo que temos de melhor, a capacidade de resiliência
e de dar as mãos quando nos ataram os pés.
Três personagens entrecruzam-se
na história, um primeiro-ministro, uma mãe e um guerrilheiro, personagens
anónimas, como acontece em muitas das histórias de Saramago. E em relação
a estas três personagens eu gostava que a autora lhes tivesse dado mais
protagonismo e as tivesse envolvido mais e mais cedo na narrativa, senti falta
de sentimentos e emoções, precisava de mais para empatizar.
A escrita, também ela semelhante à
de Saramago, é muito intimista, com frequente apelo ao leitor. E dito tudo isto,
vi-me num impasse, ao questionar-me se a originalidade que assisti neste livro não
se perde na comparação inevitável com Saramago. E a verdade é que não encontrei
resposta. Se Saramago não existisse, este livro seria completamente inovador e revolucionário
a vários níveis, mas ao mesmo tempo não lhe consigo retirar mérito porque está excepcionalmente
bem escrito, e nunca me pareceu uma tentativa forçada de imitação, mas algo genuíno
e natural. Rute escreve naturalmente bem e acredito que em obras futuras se consiga distanciar sem perder a qualidade.
Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade) foi uma leitura
que me deixou um sabor amargo na boca ao fazer-me pensar se não será este o
rumo que a sociedade em que vivemos está a tomar, ainda que não nos faltem sentidos, falta-nos
muito o sentir.
Sem comentários :
Enviar um comentário