sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Posso Perguntar? Posso? - com Inês Botelho Parte I

Sobre o autor:

"Inês Botelho nasceu em Vila Nova de Gaia, em Agosto de 1986. Licenciada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, iniciou em 2009 um Mestrado em Estudos Anglo-Americanos. Tem também o 8.º grau de Piano e Formação Musical. É autora da trilogia de fantástico O Ceptro de Aerzis, composta por A Filha dos Mundos (2003), A Senhora da Noite e das Brumas (2004) e A Rainha das Terras da Luz (2005). Publicou ainda o romance Prelúdio (2007)."

Site da autora:  www.inesbotelho.com


Entrevista: 


Quando é que começou a escrever?

Eu tinha a mania de fazer historinhas e muitas vezes até fazia marcadores de livros em papel cavalinho, com um desenho de um lado e uma história do outro. Impingia aquilo à família. E foi mais ou menos por aí. Nessa altura estava convencidíssima que ia ser escritora! E foi mais ou menos assim até aos 10-12 anos e depois desinteressei-me. Mas, passado uns anos voltei a ler aquilo que tinha escrito e ri-me, passei a tarde a rir e depois arquivei porque se calhar um dia vou precisar de me rir outra vez.

E só voltei a escrever, sem ser para escola, na altura em que escrevi o primeiro livro. Basicamente porque tinha aquela história ali na cabeça já há algum tempo e depois também teve algum factor de birrice. Eu na primária não aprendi a ler como em geral se aprende, aprendi por uma coisa que se chama método global e aquilo basicamente lia-se uma história, de uma história lia-se uma frase, a frase parte-se em palavras, fazem-se novas frases com as palavras e depois partem-se as palavras em ditongos e fazem-se novas palavras e o que interessa é mais o som do que a ortografia. O que fez com que eu desse imensos erros ortográficos e quando cheguei ao secundário isso descontava então as minhas notas eram inferiores ao que poderiam ser. E, na altura, a professora de Português pensou numa série de estratégias para me conseguir pôr a escrever mais. E, no meio disso, eu comecei a ganhar uma certa ousadia para tentar descrever aquela ideia que tinha. E, ao mesmo tempo, os meus pais tiveram uma daquelas conversas: tens que ter cuidado, olha que isto, olha que aquilo. E quando dei por ela a conversa já não era só os erros ortográficos, mas era também toda a questão da própria gramática, da escrita e da construção frásica e eu achava que se eles tinham toda a razão na parte ortográfica já não a tinham no resto. Então o livro também já foi um bocadinho uma resposta ao fim de alguns meses a dizer: “Tomem lá, que afinal até escrevo bem!”

A certa altura era mais do que a birrice, era o desafio de “consigo levar isto até ao fim com um mínimo de qualidade”, e no momento nem sequer me tinha passado pela cabeça publicar aquilo. Nem estava interessada nisso.

Só que depois como os meus pais insistiram e eu, enfim, quase que a contragosto disse manda-se para umas editoras e logo se vê. Se acontecer, aconteceu…

Foi mais ou menos assim que aconteceu. A partir do momento que a trilogia foi publicada, e ela tem as suas grandes virtudes mas também tem muitos defeitos, os outros livros vieram um pouco de arrasto. Mas em todo o caso eu fiquei sempre grata por ela ser publicada naquele momento porque acho que as coisas têm a sua época. E quando se fizeram as edições de bolso e eu tive de voltar a revê-los, eu impus-me que não ia mexer naquilo. Ia limpar alguns pronomes pessoais e possessivos e só ia alterar as frases que não estavam mesmo bem redigidas, não se percebiam e sempre com a norma de usar ao máximo o mesmo número de palavras e as mesmas palavras que estavam lá mas reorganizadas. Aquilo foi escrito na época em que foi e eu prefiro agora andar para frente do que estar a rever aquilo não sei quantas vezes. Até porque depois iria acabar a fazer outro livro que já não seria aquele.

Isto foi muito bom porque tornou a opção da escrita uma opção válida, porque senão fosse publicado não pensaria em fazer um livro a seguir porque o objectivo antes era fazer aquele e ponto final.


Qual é o primeiro livro que se recorda de ler?

O primeiro livro que sei que li sozinha, se não estou em erro, chamava-se “Um segredo...Dois segredos”, que era um livro da colecção infanto-juvenil da Verbo se não estou em erro.

Eu tinha muitos pesadelos com lobos quando era miúda e a minha mãe encontrou aquele livro que era exactamente sobre essa questão e desmitificava a questão dos lobos. Lembro-me de o ler e, de facto, ter resultado, porque nunca mais tive pesadelos com lobos.

O Capuchinho Vermelho para mim era quase uma história de terror e dediquei-me agora ao estudo dos contos de fadas, contos populares e muito também ao Capuchinho Vermelho.

Sobre esse livro sempre fiquei com a ideia que era um livro grande, volumoso e há uns tempos encontrei-o e é muito pequenino, nem sei se chega a ter 50 páginas.


Neste momento qual é o próximo livro na sua lista de leitura?

Neste momento estou a acabar o “Casas Pardas” de Maria Velho da Costa, e a seguir vou talvez para o “ Ambas as mãos sobre o corpo” de Maria Teresa Horta.

Às vezes é mais o que é que me apetece agora ou de repente vejo qualquer coisas e “apetece-me este” e pego nesse. Quase de certeza que vai ser Literatura Portuguesa porque, em geral, quando estou a escrever prefiro autores Portugueses porque ajuda-me de alguma forma a desinibir a escrita e a pensar com raciocínio de Português. Porque se leio um livro em inglês ou uma tradução não são os mesmos tipos de ritmos nem linguagem.

E, além disso, eu já tenho uma tendência a viciar-me no inglês e assim ao ler em Português ajuda-me a viciar o raciocínio no Português. Torna-se automático o Português e não aquele jogo de lembrar-me da palavra em Inglês e ter de fazer um esforço para pensar qual é em Português. Isso também está um bocado relacionado com o facto de estar a estudar agora a literatura Anglo-Americana, bibliografia toda em Inglês, muitas vezes escrevo em Inglês, portanto agravou.


Quais são os seus livros / autores preferidos?

Sou perfeitamente fascinada pelas “Novas Cartas Portuguesas”, é um daqueles livros que adoro. Foi um furacão quando li aquilo. Andava já há muitos anos há procura dele e encontrei-o quando finalmente foi reeditado. O livro é fenomenal, é extraordinário, é um livro que gosto de reler, e às vezes só pegar nele e ler só uma parte do texto.

O “The Bloody Chamber “ de Angela Carter, e quase toda a sua ficção, mas especialmente a sua ficção culta. É das minhas autoras preferidas assim como o Faulkner e o “ The Sound and the Fury”.

Tenho uma certa paixão pela poesia da Natália Correia. O “ Anjo Ancorado” do José Cardoso Pires que é um livro pequenino mas é assim uma perolazinha.

Toda a época modernista dos Americanos. Gosto muito dos modernistas do início do século XX.

Um autor de que gosto também muito e que tem também um livro extraordinário é o Jonh dos Passos, o “Manhattan Transfer” é aquele que me disse mais, foi o primeiro e teve maior impacto.

Entre os meus autores favoritos também se encontram: Ana Teresa Pereira, Lídia Jorge e Italo Calvino.


Qual considera a melhor companhia para um livro? O café, a praia, o quentinho do sofá?

Todas, eu leio em todo o lado. Um bocadinho melhor se tiver, digamos, as costas apoiadas. Mas de todas as formas e mais algumas, eu leio em qualquer sítio.


Há algum grupo de autores que tenha influenciado mais a sua escrita?

Na altura não tive tanta consciência disso mas quando ia falando fui-me apercebendo que a Marion Zimmer Bradley teve bastante importância na trilogia, naquele período inicial. Embora o Tolkien seja aquele mais comummente identificado, para mim não foi o mais relevante. Para mim teve importância para eu perceber que o fantástico não se tinha de limitar ao infanto-juvenil, podia ser para um público adulto, que era igualmente válido e que podia resultar muito bem. Isto porque ainda não conhecia assim tanto da literatura fantástica quanto isso e não sabia que havia, mesmo para adultos, autores muito mais interessantes e estimulantes do que o Tolkien. Foi importante nesse sentido, não foi tão importante para mim enquanto autora.

Depois há um livro de Michael Cunningham, “As Horas”, que me deu uma outra ideia do jogo da linguagem, de começar a usar uma linguagem que mais do que servir a história fosse parte integrante da história. Isto é algo que eu tenho vindo a tentar incorporar cada vez mais e que para mim é cada vez mais relevante.

Também foram importantes o Neil Gaiman, a Margaret Atwood, o Virgílio Ferreira – que foi tristemente excluído das leituras obrigatórias do secundário; a maioria das pessoas odeia “A Aparição”, eu adorei, foi um daqueles livros que me marcou, e foi mais um dos que me deram essa noção da linguagem ser parte da história, e ao mesmo tempo de que qualquer coisa pode ser um recurso estilístico. Este pode ir a outro nível, deve-se usar e para isso é necessário ter a linguagem como utensílio chave da história que se está a contar e não apenas como uma ferramenta de trabalho. Portanto, a linguagem tem de ser conhecida por dentro e por fora.

Entretanto comecei a ler mais poesia; aos 14 ou 15 anos detestava poesia, a maior parte da que me apresentavam era daquela poesia “romantico-amorosa”, muitas vezes lamechas, e eu achava-a uma palermice! O ponto de viragem foi quando a minha mãe se zangou com esta história, e foi buscar o “Cântico Negro”, de José Régio, que se tornou um dos meus poemas preferidos. Ainda hoje o sei praticamente de cor.

Aí comecei a ler outra poesia, outros autores que me agradavam, e surgiu a Natália Correia, a Maria Teresa Horta, gosto muito de variadíssimos poetas mas de alguma forma tendo um bocado para as mulheres… Não porque tenham temáticas que me interessam mais, só porque de alguma forma o ritmo do poema me entra mais. Na literatura, e talvez mais na poesia, eu tenho a necessidade de… vamos chamar-lhe um feitiço, algo que me encante, que me prenda. Pode ser por variadíssimos motivos, mas muitas vezes a poesia delas tem mais esse efeito. Embora também haja muitos homens que façam isso – Elliot também é daqueles que me agarrou, ainda hoje consigo recitar poemas inteiros de cor. É o ritmo, é quase como se fosse um feitiço. E não é só a nível da poesia, a Carter também faz isso, é a questão de ter um ritmo, de ter algo que induza o leitor a qualquer coisa. A linguagem é necessária também para isso.

Mesmo a escrever, é algo com que me preocupo. Ao início escrevia sempre com música, muito indutora de sensações, mas agora nunca o faço – a música distrai-me da melodia e do ritmo da linguagem em si. Assim consigo prestar atenção ao que estou a escrever e não ao resto. E se por acaso a frase empanca, eu tenho que a reescrever. Parar ali, voltar para trás e voltar ao trabalho, para ela seguir, para ser fluida, quer seja um ritmo acelerado ou lento. A poesia também ajudou muito nisso.

Depois, já de épocas muito mais recentes, a Margaret Atwood, que tem outro livro que eu adoro, o “The Handmaid's Tale”, que é uma distopia, mas uma distopia contada de uma forma diferente. Agora, por causa de uma série de livros, habituamo-nos a ter distopias que são quase mini filmes de acção em livro. Naquele há um mundo distópico, mas é contado pelos pensamentos de uma pessoa que vive nesse mundo, que está privada de música, de literatura, de convívios… Portanto, percebemos a distopia não só no seu impacto social mas também no seu impacto individual.

Nesta altura, em termos de escrita, os modernistas foram daqueles que mais me levaram a, conscientemente, trabalhar a escrita noutro sentido – esta ideia que se iniciou com o Michael Cunningham, de usar a linguagem como parte integrante da história. De alguma forma, iniciei-me no modernismo com “The Sound and The Fury”; lembro-me perfeitamente de ter lido o livro e pensado, “Não estou a perceber metade disto, mas isto é extraordinário!” E ao mesmo tempo, de ter começado a pensar, “Mas isto é possível? Eu posso fazer isto com a linguagem?” Não há regras, a frase não tem de ter lógica gramatical, porque nós não pensamos sempre com a lógica gramatical certa. Claro que isto é um jogo que tem de ser muito bem pesado, feito com muito cuidado porque rapidamente descamba, mas não tenho que estar presa por isto – aquela ideia de que primeiro conhece-se a regra, sabe-se usá-la muito bem, e depois subverte-se tudo, e torna-se muito mais divertido.

Depois comecei a ver isto em livros que já tinha lido, mesmo de autores portugueses, e começar a perceber isto de outra forma. Começar a ver não só camadas de significado, com vários aspectos de uma história, mas também diferentes níveis de uso da linguagem. Uma das grandes mudanças foi essa.

Uma pequena nota à parte – um dos vários motivos para ter escolhido o mestrado em Literatura Anglo-Americana foi porque uma das leituras obrigatórias é o “The Sound and The Fury”, e eu achei que precisava de estudar aquele livro. Precisava de o perceber, pois sabia que não o tinha percebido todo… Depois, quando o reli, pensei, “Ah, pois… eu na altura não percebi nada!” Agora já o devo ter lido umas 7 vezes, fiz um trabalho sobre ele. É um daqueles livros que acho que toda a gente deve ler, não o vai perceber a primeira vez, mas pronto!


Agora, umas perguntas mais dirigidas às suas obras… As personagens são baseadas em alguém que conheça?

Não, ou tanto quanto o consigo não. Eu tenho muito a mania de que sou ficcionista, e gosto de fazer ficção e não auto-biografia disfarçada… Tento evitá-lo ao máximo, quando uma personagem é parecida com alguém, tento afastá-la um bocado. Mas claro, é inevitável que haja algumas parecenças, da mesma forma que há com todos nós. Pode soar um bocado pretensioso, mas mais do que ter personagens, eu tento ter pessoas imaginárias. Portanto, se calhar vou ter algumas semelhanças, mas não penso, “Quero usar isto desta pessoa.” É inevitável que isso transpareça, porque por mais que eu invente, qualquer coisa que eu invente é necessariamente baseada naquilo que eu conheço, nem que seja por oposição. Depois, para além das questões literárias, há outra parte pessoal – acho que é extremamente desagradável uma pessoa verter num livro outra pessoa qualquer.


Gostava de ver alguma das suas obras adaptada ao cinema ou à televisão?

A priori, não tenho problemas, mas é extremamente improvável – vivemos em Portugal, não nos Estados Unidos, nunca houve orçamento para esse tipo de aventuras, e agora muito menos. Mas televisão, cinema, até eventualmente teatro… Sou perfeitamente fascinada por cinema e por teatro, mas não sei até que ponto me deveria meter nisso. Provavelmente o melhor seria afastar-me e deixar que outros lidassem com o assunto, até porque, por mais que eu tente ser racional, sou inevitavelmente um pouco possessiva relativamente aos livros, e fazer uma adaptação é sempre uma tradução para outro meio, com outro tipo de linguagens, de técnicas e componentes relevantes. Seria melhor afastar-me desse processo, mas não me importaria nada de o ver, desde que seja feito com respeito, e que as ideias essenciais da obra estejam lá – muito mais importante do que os eventos específicos, é que as personagens não se tornem outras personagens, que o âmago do livro, dos assuntos tratados, estejam lá.


Já alguma vez encontrou alguém a ler um livro seu num transporte público, na rua, num local público?

Já encontrei alguém a comprar o livro. Mas, normalmente, se ele for para a direita eu vou para a esquerda, e afasto-me imediatamente o mais possível. (risos) Tem sempre uma certa componente de... não é bem vergonha, mas fico um bocadinho atrapalhada. Não quero que a pessoa sinta de maneira nenhuma que a estou a observar, ou que está a ser pressionada. Tento deixar a pessoa em paz com o livro, como eu também gostaria de ser deixada em paz. Claro que, enfim, numa Feira do Livro é um bocadinho diferente. Uma pessoa tem quase a obrigação de dizer "Esteja à vontade, se quiser perguntar alguma coisa". Em geral, sabe-se que nós estamos ali, pelo menos nota-se que estão ali umas pessoas sentadas que se calhar estão ali a fazer alguma coisa, que não a registar os livros. Mas quase sempre se encontro alguém tento afastar-me, e acho que se algum dia encontrar alguém a ler o meu livro vou tentar fazer o mesmo, para a pessoa também não se sentir ali na obrigação de dizer "Ai sim sim, é muito interessante!".


No processo da escrita, vai mostrando a alguém o trabalho, ou só quando já está acabado?

Quase sempre, eu só falo do livro, só mostro o livro quando ele tem o último ponto final.

O último ponto final da última página, então eu imprimo o livro e entrego a algumas pessoas em quem confio, que fazem uma leitura e apontam uma série de questões, seja gramaticais, porque não perceberam esta frase ou porque acham que aquela parte é confusa e não a perceberam tão bem. Depois pego nessas opiniões todas, deixo correr pelo menos um mês até reunir tudo isso, e faço a minha própria leitura, os meus apontamentos, e revejo o livro do princípio ao fim.

Este livro está a ser um bocadinho diferente, porque o estou a escrever já há quatro anos. Interpôs-se muita coisa pelo meio, o mestrado e uma série de outras complicações que nunca pensei que aparecessem, mas que me fizeram estar parada durante quase um ano, e portanto com este livro está a ser bastante mais lento, e ao mesmo tempo o que está a acontecer é que, em especial num ano, ele teve uma grande mudança, mudei-lhe o tom e a estrutura, portanto revi-o, e estou a reescrever também partes iniciais que acho que não são estilisticamente coerentes com o resto e que poderiam estar melhor de outra forma.

Há sempre uma fase do processo de escrita que não é propriamente angustiante, mas que às vezes cria muita ansiedade, porque é uma fase em que começo sempre a questionar. Não quando estou a escrever. Quando a estou a escrever, em geral, estou surpreendentemente calma. Mas no momento em que fecho o ficheiro, em que desligo o computador, começo imediatamente a pensar "Isto se calhar não está bem escrito", "Isto não deve estar bem exposto, "Isto não é suficientemente entusiasmante", porque agora toda a gente diz "O livro não me entusiasmou, não acontecia nada". E depois começo a imaginar as reacções de uma variedade de leitores, existentes ou inexistentes, não interessa muito. E começa a ser um processo com muitas dúvidas, não no sentido em que vou ali mudar, porque eu sei o que é que quero fazer com o livro. Sei sempre qual é o meu objectivo - tento ser não fiel a mim, não fiel aos leitores, mas fiel ao livro - e não o vou mudar independentemente das dúvidas, das crises existencialistas todas. Mas chega de qualquer forma uma altura em que começo a ficar com dúvidas. E agora, também porque já passou tanto tempo, tenho partilhado um bocadinho mais, mas com apenas duas pessoas, e sempre um bocadinho às vezes a contragosto, para de alguma forma ir tendo já uma reacção e ficar um bocadinho mais tranquila. Mas, regra geral, tendo a não mostrar, porque percebi que resulta mal. As pessoas tendem a criar expectativas. Digamos que descobri que os livros, até serem publicados, funcionam muito bem, mas é na minha cabeça. E se eu tento explicar, dizer "O livro é sobre isto", as pessoas criam uma série de ideias, muitas vezes erradas, e pensam "Vai ser este o assunto, vai ser esta a abordagem", e depois não é. E acontece um bocadinho aquela questão, que acho que mesmo assim às vezes acontece quando uma pessoa lê uma sinopse e a sinopse sugeria de alguma forma uma coisa, e o livro depois não tem nada a ver com isso. E se calhar o livro até é igualmente bom, ou até melhor. Ou pior, não interessa. Mas a verdade é esta: começou-se a ler com esta expectativa, com esta ideia, com este conjunto de assumpções. Portanto, eu prefiro que não haja isso, e daí tender a não falar deles enquanto eles não estão prontos. A partir do momento em que ele está pronto eu consigo, digamos, compartimentalizar o livro e perceber "Isto pode dizer-se sem criar expectativas erradas", e "A partir daqui é melhor estar quietinha e não dizer mais nada". E ao mesmo tempo vendo o livro, as pessoas podem lê-lo imediatamente, e não estão não sei quantos meses a pensar "Se calhar vai ser isto ou aquilo".

Eu trabalho, quando estiver pronto é óptimo, e aí podem dizer tudo o que quiserem. Eu também sei que, seja as primeiras pessoas a quem mostro o livro seja depois futuros leitores, podem sempre dizer o que querem, porque eu ponho o livro cá fora. Portanto, eu arrisco-me a que haja variedade de opiniões e interpretações diferentes. Eu posso concordar ou posso discordar, há algumas interpretações que eu nem vejo como é que lá chegaram, mas é tudo válido. Aliás, em termos de literatura, eu costumo dizer que eu consigo sempre defender a minha análise literária porque consigo arranjar argumentos que justifiquem aquilo. E portanto qualquer análise literária vale independentemente da intenção autoral, que no fundo acaba por não ser chamada para nada a partir do momento em que o livro saiu. Estando o livro fora, de alguma forma deixa de me pertencer. Claro que eu posso achar que há algumas interpretações que não sei onde foram buscar, e posso achar que algumas críticas podem ser mais ou menos justas.

Em geral sou extremamente autocrítica, portanto quando vejo uma crítica negativa (e isto torna-se um bocado horrível mas é mesmo assim), presto-lhe muito mais atenção do que a uma crítica positiva. Perante uma crítica negativa, eu obrigo-me a ponderar se qualquer um daqueles aspectos me parece verdadeiro, no sentido de futuramente evitar fazer certas coisas, e acho que no geral consigo ser mais ou menos justa nesse processo. Há situações em que também acho que não têm razão, às vezes também peço opiniões externas, mas ao fim de 10 anos já consigo não ficar minimamente atormentada com a questão. Também sei que há fases em que se está mais ou menos preparado para ler determinado livro, e eu também li muita coisa para a qual não estava minimamente preparada. Quando tinha 8 anos metia na cabeça que queria ler um livro e ia às escondidas pegar no Amor de Perdição de Camilo, e achei que aquilo era uma seca brutal. E passado uns anos li-o e de facto não é nenhuma seca, pelo contrário. Às vezes isso também influencia. Portanto de momento isso já não é um processo que me assombre, de maneira alguma. Depois eu tiro as minhas ilações e as minhas conclusões e, para além de dar mais importância à crítica negativa, tento não ficar a valorizar demasiado as críticas positivas. Adoro lê-las, é muito bom.

Mas, a crítica positiva é extremamente perigosa porque hoje em dia, uma pessoa arranja sempre quem lhe diga que é um génio e, se uma pessoa começa a ponderar mais as críticas positivas, convence-se de que é muito bom, que é extraordinário, e há uma estagnação. Começa a ficar-se parado e a não evoluir, e isso para mim é a parte essencial: a evolução e não ficar ali no lodaçal ou no pântano.

Portanto não tenho problema nenhum em dizer que há montes de coisas nos meus primeiros livros que eu não faria assim hoje, e que nem sequer acho que sejam muito bem feitas, da mesma forma que acho que também tenho muitas virtudes e pontos muito bons. Ambas estas partes para mim estão bem. O que me deixaria preocupada seria se eu olhasse hoje para os meus primeiros livros e dissesse que são óptimos, perfeitos. Isso sim, seria preocupante. Mas o resto não, acho que faz parte.




Amanhã publicamos o resto da entrevista e a opinião, estejam atentos :)

2 comentários :

  1. Respostas
    1. Olá :)
      Também achamos o mesmo! Já pode ver a segunda parte da entrevista.
      Boas viagens,
      Bloguinhas

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