sábado, 30 de agosto de 2014

Posso Perguntar? Posso? - com Inês Botelho Parte II

Acerca d'O Passado que Seremos: o que a inspirou na escrita deste livro?

O "Passado que Seremos" nasceu de uma ideia pequenina, mais ou menos como nascem todos os meus livros. Uma ideia pequenina que depois eu vou aumentando, aumentando... 

Mas era a ideia daquele casal central e daquele contar, daquele reviver. Só que à medida que fui avançando fui pensando: há esta relação, portanto duas pessoas, e quem são estas pessoas? E quem são as pessoas que circundam estas pessoas? Porque é que estou a contar isto? Qual é o meu objectivo ao contar isto? Porque é que é relevante contar esta história? 

O livro foi-se tornando muito menos sobre a relação deles e muito mais sobre eles, e o que me interessou principalmente foi esse aspecto.

Eu fui um bocadinho relutante no início porque é de alguma forma o livro mais próximo das minhas vivências, no fundo é sobre a minha geração, e eu tinha aquela mania de ser ficcionista, e não estar a contar aquilo que, de alguma forma, é o meu dia-a-dia. E portanto ainda estive algum tempo a ver se conseguia mudar aquilo, se os punha numa outra época. Mas se fosse para trás isso implicava um Romance Histórico, implicava pesquisa, centrar a atenção noutros aspectos que me iam distrair do que eu queria. Se fosse para o futuro então já não era Romance Histórico, mas era Ficção Científica e, mais uma vez, tinha de prestar atenção a outros pormenores, em maior ou menor grau, mas tinha de o transparecer ao leitor, e portanto tinha mais uma vez de disfarçar. E acabei por me resignar a escrever sobre a minha geração, ponto final, vamos lá para a frente com isto. E depois tentei no romance não dar então uma única visão, e não dar sequer uma visão que é a minha. Há coisas em que concordo mais com a Elisa, há coisas em que concordo mais com o Alexandre, e há coisas em que discordo absolutamente dos dois. E não queria que fosse aquele livro quase documental de "Isto é a minha geração, é isto a nossa verdade", mas mais no sentido de "Isto são duas pessoas que têm as suas vivências dentro desta época, e isto é a verdade deles". E pode ser a mentira de muita gente, e a verdade parcial de outros, e não interessa muito. São estas duas pessoas, neste determinado contexto social, que obviamente os influencia e que é preponderante. 

Ao mesmo tempo, tentar demonstrar a minha geração que no fundo veio a seguir à chamada geração rasca que foi uma geração considerada mais rasca do que a rasca. E a ideia que circulava era um bocado a de noitadas, bebedeiras, discoteca e pouco mais, gente sem cultura, gente sem outro tipo de iniciativa, miúdos mimados. Ainda hoje em dia ouve-se muitas vezes, e às vezes de forma perfeitamente absurda, disparada em cima dos outros, quando isso nem sequer é verdade. As pessoas formavam-se de uma série de expectativas. Para nós foi um bocado aquela ideia, sempre disseram que se nós nos esforçássemos e trabalhássemos muito bem chegávamos aos nossos 30 anos e tínhamos as nossas vidas, os nossos empregos e as nossas famílias se assim desejássemos. E a verdade é que tudo isso foi uma falácia e causa uma certa sensação de fraude, de ser-se enganado. Portanto não é propriamente uma geração de mimados. Pode haver muita gente mimada. De certeza que há. Há muitos que não são. Há sempre gente de todas as espécies. Portanto, de alguma forma tentei com o livro desconstruir uma série desses preconceitos sobre o que é a minha geração e o que é que ela faz. Mas não é de modo algum um livro que faça perceber a geração. Não é. Vão perceber uma parte. Vão perceber duas pessoas ali e principalmente fazer isso, ter duas pessoas, a Elisa e o Alexandre e conseguir que o leitor seja submerso nelas. As duas não na íntegra, mas tanto quanto é possível fazer num livro de 200 e poucas páginas.


Já pensou dar continuação ao “O Passado que Seremos”?

Não. Enfim, às vezes uma outra ideia de pegar não neles os dois, mas pegar eventualmente na Rebecca ou noutra pessoa. Mas eu não gosto de voltar a livros que estão feitos, nem sequer para pegar noutras personagens ou noutros pontos de vistas ou continuar a história passados 20 anos ou seja o que for, porque fico sempre com a ideia que vou arruinar parte do encanto do livro. E, ao mesmo tempo, estou perfeitamente pacífica relativamente às personagens. Para mim elas não acabam com o livro, mas é basicamente eu deixo-as no ponto C e elas continuam a vida delas e eu continuo a minha e ninguém tem nada a ver uns com os outros. Por isso, em geral, prefiro não voltar aos livros que escrevo.


E já alguma vez pensou voltar ao género fantástico?

Sim. Penso e vou voltar. Aliás, de alguma forma já voltei, com contos. Sim, no fundo todos os meus contos são do género fantástico. Eu gosto de fantástico: fantasia, ficção científica, embora tenha mais receio de entrar pela ficção científica, porque como tenho formação em ciências, o meu problema não é a ficção científica que adoro lê-la, o meu problema é o rigor científico, ser de alguma forma um bocadinho amarrado pelo: “Eu não sei se posso afirmar isto. Eu não fui confirmar, não fui fazer testes, não encontrei nenhum ensaio ou nenhum artigo sobre este assunto, logo posso estar a dizer um erro”. Por isso o meu problema é mais nessa ordem. 

Gosto ainda mais de ver séries e filmes de ficção científica e depois tenho aquele hábito que para muitas pessoas se calhar é desagradável de ver: “Olha aquilo não tem lógica nenhuma”, que é uma forma mais íntima de ver as séries. Não é bem pelo prazer da crítica, é o prazer do estímulo científico. Eu gosto dessa parte. Mas, por outro lado, restrinjo-me em qualquer tentativa na ficção científica. Por mais que eu tente investigar ou perguntar a alguém, há sempre aquele receio de estar a dizer uma enormérrima palermice. Enquanto que a fantasia é fantasia, não é suposto ser real e, portanto, funciona melhor, eu sinto-me mais livre, estabeleço as minhas regras, logo não posso passar destes limites, mas está a minha regra estabelecida e o resto não tem problema. 

E depois, eu tenho o vício do fantástico desde miúda, quanto mais não seja a iniciar com os contos de fadas e os contos populares, toda esta noção do maravilhoso, de situações encantatórias, é algo que me é bastante grato e que eu vou sempre incorporar nos livros todos, incluindo no “O Passado que Seremos”, senão de forma explícita no sentido real, a fantasia pode não ser assumida como real, mas enquanto imaginária, sequência onírica e simbologia. E não acho, aliás às vezes sou um bocadinho acérrima nesta questão, que a literatura fantástica não é uma literatura menor, nem tem que o ser. Claro que há imenso lixo dentro da ficção científica e dentro do fantástico, mas eu acho que é como alguém dizia “Há imenso lixo entre tudo”, ou seja, 90% de tudo é lixo. 

Portanto, não há maus géneros. Há maus livros e bons livros. E daí tenho todo o gosto e vontade de voltar à fantasia com relativa brevidade, não só dentro dos contos, aliás eu detesto caixinhas. Se facilitam algumas coisas, esta mania da taxonomia para tudo acaba por restringir e muitas vezes faz com que as pessoas digam aquele provérbio “Desta água não beberei” ou “Ah eu odeio literatura fantástica", logo "Cruzes credo canhoto! Não pego num único livro de literatura fantástica!”. E depois há alguns que dizem “Essa literatura passada na contemporaneidade, eu não posso com ela. De maneira nenhuma, odeio isso, literatura a pensar só no seu próprio eu." Pronto, lá está, acaba por ser uma palermice de um lado e do outro. Acabam por se privar de bons livros e de obras de principiantes interessantes num sítio ou no outro. Portanto, eu gosto de ser livre, não estar nada preocupada com as classificações de género, gosto de fazer o que me apetece. 


Em relação às editoras, acha que se aposta em autores portugueses ou que muitas vezes se deixa passar por serem pessoas mais desconhecidas? 

Não. Aposta-se bastante em autores portugueses, talvez não se aposte tanto como toda a gente quereria... Agora também há outro problema no meio disto tudo que é: da mesma forma que nós não somos todos feitos para ser médicos, não somos todos feitos para ser escritores. Às vezes quando um escritor diz isto parece que está a assumir que “o meu trabalho é sagrado e eu sou um génio dentro disto” e não é isso. Por exemplo, eu sou uma nulidade no desenho. Adoro pintura, tenho imenso fascínio por artes plásticas. Sou uma nulidade. Toda a minha família é brilhante nessa área, eu não sei desenhar uma célula. A única coisa que ainda vou desenhando são células e se os meus colegas demoravam 20 min eu demorava 1h. Isto não é exagero, é literal, podem perguntar a qualquer pessoa que me conheça minimamente. Eu sempre fui um desastre a desenho. 

Portanto, por mais que me esforce, eu sei que não tenho apetência para aquilo. Posso trabalhar e tornar-me melhor do que o que sou, mas há sempre um 10% invisível (90% é trabalho, 10% eu não sei de onde vem). Eu não tenho apetência para desenho, e há muita gente que não tem apetência para ser escritor. E portanto, às vezes confunde-se um bocado as editoras não apostarem em autores portugueses com o desejo mais ou menos pessoal ou de alguém próximo de ter um livro publicado. Pela minha experiência, era uma miúda quando comecei a publicar, tinha 16 anos quando enviei o livro para as editoras, não fazia a mínima ideia se ia publicar ou não o livro, foi da forma mais inocente possível: peguei na lista telefónica, editoras, escolhi, telefone: “ Olá, chamo-mo tal, tenho x anos, quero publicar um livro, agora como é que faço?”. E, tirando algumas editoras que na altura disseram que não publicavam livros de autores menores, por questões legais, não houve ninguém que me dissesse imediatamente “Não, de maneira nenhuma.” Claro, é um processo muito demorado. Demora, no geral, muitos meses. O que a pessoa pode fazer é armar-se de paciência, porque vai demorar a resposta. Convém esclarecer logo no início se a editora responde a toda a gente, ou se só responde àqueles que aceita e depois convém não fazer a estupidez que eu fiz: eu mandava para uma e esperava 2, 3 meses e mandava para outra. Mandem tudo ao mesmo tempo, é sempre a melhor solução. Mas, para alguém da minha idade, uma miudinha que não tinha familiares minimamente dentro do meio, e que enviou os manuscritos para as editoras, ninguém me fechou a porta à partida, nem foi por isso que deixou de ser publicado. Portanto, não me parece que haja assim tanto entrave quanto às vezes se diz, e tem-se vindo a publicar muitos mais autores portugueses. Aliás, basta verem, nós temos, para o país que somos, uma imensa publicação. Não sei, mas por semana saem se calhar dezenas de livros, obras novas, publicações. Claro que se publica muito autor estrangeiro e do mercado inglês ou americano, porque muitas vezes são aqueles que, de alguma forma, já deram prova de sucesso comercial e as editoras tendem a apostar naquilo que sabem que provavelmente vai vender. E, se calhar, às vezes fazem mais campanhas para esses que para os portugueses. 

No entanto, esses sucessos comerciais também possibilitam que haja alguns desastres em apostas novas ou que não são desastres mas não são grandes sucessos comerciais. Um autor português vende relativamente pouco a não ser alguns casos especiais, por exemplo o nosso Nobel da Literatura demorou vários anos a vender imenso. E depois, temos outro tipo de sucessos comerciais, relacionados com o que está na moda, mas que são acasos, um grupo muito restrito do mercado português.

Publicam-se muitos livros por mês, muitos autores portugueses e inclusive muita gente nova que está a chegar ao mercado. Portanto, não me parece que haja pouca aposta nos autores portugueses. Poderia haver um maior empenho das editoras a publicitar os autores portugueses mas mesmo assim parece-me que tem havido um trabalho melhor para o meio literário português. 

Depois incutiu-se no grande povo a ideia que os artistas, sejam escritores, cineastas ou artistas plásticos ou seja o que for querem é viver de subsídios. Mas, mesmo assim, já se começa a desconstruir esta ideia até porque relativamente a essa questão de viver de subsídios: é raríssimo o artista português que vive de subsídio. Há anos que não há subsídios para nada e mesmo quando havia eram muito pequeninos, portanto a maioria das pessoas ou está a viver com muitas dificuldades ou está em casa dos pais. Estes últimos estão um pouco mais amparados, com mais facilidade em pagar a comida ou então, tem de ter um trabalho complementar que permita pagar as contas do dia-a-dia, e neste momento nem sequer arranjar um trabalho complementar é fácil. 

Isto agora vai ser provavelmente um pouco mais desastroso para toda a gente e isto nota-se também ao nível da venda de livros, já se nota um certo retrair do mercado. E, além disso, é sempre muito fácil dizer os livros são muito caros, o teatro é muito caro. E eu não digo que não sejam caros para o nível de vida que nós temos. Nós temos salários muito baixos para os nossos preços de tudo. Contudo continua a haver muita gente a pagar 20€ para ir ver um jogo de futebol! O que tudo bem, eu também gosto de ver futebol, mas não se pode ter este discurso da cultura é exorbitante, os artistas são uns gananciosos e põe um preço elevadíssimo, porque sim nós temos preços elevados mas é um problema generalizado e não um problema dos produtos culturais. 


Dentro das suas paixões, cinema, música, teatro e mesmo a escrita consegue escolher uma que lhe dê mais prazer? 

É necessariamente a escrita, por mais que eu tenha acalentado durante muitos anos aquele sonho mais palerma da representação e devo ter praticado, entre os 12 e os 13 anos, aquele discurso ao espelho: “I'm so thankful for this Oscar!”. 

Mas, apesar disso, a verdade é que apenas um em um milhão é que consegue, e então também fiz
uma opção e achei que não devia investir por aí. As outras artes têm quase sempre um componente que nos capta mas depois fui achando que podia não ter tanto jeito para aquilo quanto achava ou quanto me diziam na altura. Da mesma forma que eu gostava muito de tocar piano mas não era uma pianista esforçada. Tenho amigos que neste momento são concertistas e eles sempre foram assombrosos e eu podia trabalhar muito e tocar uma música muito bem tocadinha, podia trabalhar muito mas ainda faltavam aqueles 10% inexplicáveis que uma pessoa tem, quer seja uma aptidão ou um talento, chamem-lhe o que quiserem. Obviamente isto tudo, se não houver os 90% de trabalho, vai tudo para o tecto, não vai adiantar nada. A verdade era que faltava ali qualquer coisa e eu sabia que não tinha qualidade para ir para o meio e como carreira, fosse numa área ou na outra, não me interessava assim tanto e que me interessava muito mais por outras, por muito que eu goste delas. 

A literatura, de facto, é a minha área, de alguma forma é-me inata, já tenho o trabalho mais facilitado, eu consigo perceber os mecanismos daquilo sem grande esforço e provavelmente se algum dia disser que sim ao teatro ou ao cinema será pela vertente mais literária. 


O que diria a alguém que se está a iniciar agora numa possível carreira como autor ou que tenha esse desejo? 

Além de mandar para várias editoras, ligar antes para saber o que as editoras querem. Há editoras que querem que se mande apenas um resumo, apenas os primeiros capítulos ou o livro todo. Varia sempre. 

Mas, aquilo que eu diria, uma coisa muito simples: ser o mais auto-crítico possível. Não ficar satisfeito com a aparente genialidade de um primeira ideia que possa surgir. Focar num ponto, e por vezes pô-lo de lado e vamos ver se conseguimos fazer melhor. 

Não ficar à espera da divina inspiração senão nunca mais se vai sair do mesmo sítio. É fazer um exercício mesmo de trabalho, se eu em vez de ir por aqui fosse por ali, se tivesse esta ideia A acrescida de B e C. Isto resulta ou não resulta? Isto é parvo, então lixo. Esta é mais ou menos, fica aqui de lado e depois pode ser que conjugada com outra resulte. 

Portanto, não se satisfazer com a ideia, com a escrita. Com qualquer componente do trabalho nunca ficar imediatamente satisfeito. Questionar se não se pode fazer melhor e se não haverá outra forma, por mais angustiante que o processo possa acabar por ser, tentar ver de todos os prismas.

Isto é o que resulta para mim, eu sei que parto de C, tenho de passar obrigatoriamente por H e termino em E. Ter os pontos fulcrais e saber o que pretendo com aquilo, quais são as ideias, os vários temas, em que é que eu vou insistir e arranjar forma de o transmitir de forma subtil. 

Mas essencialmente é isto: muito trabalho, muita autocrítica e não ficar satisfeito com as primeiras coisas. 

Depois é aquele conselho de que qualquer pessoa tem o direito de errar, voltar a tentar, errar de novo e tentar novamente. E pode fazer isso as vezes que achar que deve fazer, embora com uma certa racionalidade. Se chegar a um ponto e já viu que falhou 200 vezes, deve começar a pensar que não devia ir por aquele caminho com o livro ou, mesmo insistir na escrita. Ser também racional e não apenas emotivo na sua avaliação. Mas, também não achar que só porque fez um primeiro mau livro, uma primeira má história ou uma resposta negativa inicial que vai estar arruinado. As pessoas têm o direito de voltar a tentar e tentar várias vezes. 


E em relação futuro, que projectos têm em mente? 

Imediatamente acabar este livro! Finalmente! E começar outro que já tenho mais algumas ideias, e já defini mais ao menos com quais hei-de avançar a seguir. 

Agora também tenho no futuro próximo, um colóquio que estou a organizar na Faculdade de Letras, não tenho um papel preponderante na organização mas mesmo assim é uma obrigação. 

E de resto, outras pequeninas coisas, que ainda estão num estado muito embrionário para estar a falar delas.



Gostaríamos de agradecer à Inês pela gentileza de se ter encontrado connosco e de nos ter concedido esta entrevista, e também por nos ter disponibilizado o seu livro.

Inês, desejamos-lhe as maiores felicidades e muita sorte para os seus projectos futuros!

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