Para os mais distraídos, deixamos aqui a marca que a Carla Lima deixou no Bloguinhas Paradise!
- Entrevista
- Pensamentos do Dia: 1,2
- Opinião de "O Baloiço Vazio "
E estando nós de parabéns, a Carla Lima deixou uma prendinha para nós e para os nossos leitores. Um texto que pode ou não fazer parte do próximo livro ;)
A VELHA E O VELHO
"O verdadeiro mal da velhice não é o enfraquecimento do corpo, é a indiferença da alma."
André Maurois
1.
Chovia. A velha segurava uma chávena de chá. Chá verde. A velha olhava pela janela da cozinha. Observava as vacas deitadas nos pastos pintados de verde. O branco e preto das vacas a dissolverem-se na relva. A velha chorava. Chorava pelas vacas molhadas pela chuva. E a chuva insistia. Pingos grossos de água a caírem do céu e dos olhos da velha. Pingos na relva. Verde. Pingos no chá. Verde.
O velho entrou na cozinha. Olhou para a velha. O velho suspirou.
- O que é que se passa agora?
- São as vacas.
- As vacas?
Parou de chover. A velha limpou as lágrimas dos olhos. Já não caíam pingos de água. Nem do céu, nem dos olhos da velha. Nem nas vacas. Nem na relva, nem no chá. Verde.
A velha olhou para o velho. A velha suspirou.
- Queres chá?
- E as vacas?
- As vacas?
Já não chovia. A velha bebeu um gole da chávena de chá. Chá verde. A velha olhou pela janela da cozinha. Observou as vacas deitadas nos pastos pintados de verde. O branco e preto das vacas a dissolver-se na relva. A velha sorriu.
2.
A culpa foi do relógio. Foi por causa de um relógio que tudo começou. Não o casamento. O amor. Se foi à primeira vista ou não nenhum o dirá, nem a velha, nem o velho. Amor à primeira vista. Não casamento à primeira vista. Mas que foi o relógio ambos dirão que sim. Ou talvez não. O velho é distraído. Nem se deve ter apercebido que tudo começou por causa do relógio.
A velha nova não procurava amor. Aliás, odiava amor ou qualquer coisa que se parecesse com tal.
Mas um dia a velha nova foi a um baile e uma empregada da mãe disse-lhe:
- Quando fores logo ao baile usa os teus sapatos vermelhos.
E assim fez a velha nova. Usou os seus sapatos vermelhos. E o velho usou o relógio do avô. Mas a velha nova ainda não sabia.
No baile a velha nova viu o velho novo ao longe e confundiu-o com outro rapaz. Acenou. O velho ficou maravilhado e não conseguiu tirar os olhos da velha nova durante o baile inteiro. A velha nova envergonhada pela confusão passou o baile a fugir daquele rapaz que a perseguia. Até que o velho novo chegou ao pé da velha nova e atirou-lhe literalmente com um copo de vinho tinto para cima. A velha nova ficou em estado de choque e só conseguiu olhar para o relógio do velho novo. O velho novo ficou radiante por finalmente ter chamado a atenção da velha nova. A velha nova ainda em estado de choque só conseguiu dizer:
- Tens um relógio igual ao do meu avô!
E o velho novo respondeu:
- Queres um copo de vinho tinto?
A velha nova riu-se e a partir daí nunca mais se largaram. Mas se foi amor à primeira vista nenhum dos dois sabe dizer. A velha diz que a culpa é do relógio. O velho diz que a culpa é da velha por se ter rido. E nenhum dos dois culpa os sapatos vermelhos.
3.
O velho na cozinha a fazer ovos estrelados. A velha sentada à mesa. O velho:
- Às vezes, não percebo os ovos.
O velho a olhar a frigideira fixamente.
A velha:
- Os ovos são muito complicados. Até hoje ainda não se sabe quem nasceu primeiro. Se o ovo, se a galinha.
A velha riu-se.
O velho desviou os olhos da frigideira de encontro à velha.
- O quê?
A velha suspirou.
O telefone tocou. O velho:
- Continuo sem perceber os ovos. Fazem o que querem.
O velho desligou o lume e deixou os ovos em paz na frigideira. Andou com andar de velho até ao telefone e levantou o auscultador do telefone:
- Sim?
Do lado de lá alguém falou com voz feminina. O velho respondeu:
- Mais um?
O velho balbuciou algumas palavras que a velha não conseguiu ouvir. O velho desligou o telefone. Suspirou. O velho andou com andar de velho até à cozinha. Olhou para a frigideira. Uma gema rebentada. O velho:
- Não percebo. Os ovos fazem mesmo o que querem.
A velha suspirou. Depois perguntou:
- Quem era?
- A tua neta.
- Matou mais um?
- Sim.
- Será que ela usou os sapatos vermelhos como lhe disse?
- O quê?
A velha suspirou.
FIM
Mais uma vez, o nosso muito obrigada à Carla Lima. Desejamos-lhe as maiores felicidades e sucesso!
Gostei. A história agarra-nos do princípio ao fim. Quando um velho olha seja o que for, faz sempre comparação, é da idade e dos passos dados. Se nós vemos a chuva, abrigamo-nos. Eles preocupam-se com o que a chuva molha.
ResponderEliminarParabéns Carla. Quem conta uma história, conta um cento "delas". Estou curioso por ler mais outra. Espero pelo "O Balouço Vazio".
RoberTo LiMa MedeirOs
Olá RoberTo :)
EliminarA Carla Lima têm de facto uma peculiar forma de contar histórias, muito própria e a caminho do inigualável :) Também nós por cá aguardamos ansiosamente um novo livro :)
Boas viagens,
Tomé