sábado, 6 de janeiro de 2018

Posso perguntar? Posso? - com Rute Simões Ribeiro

Sobre a autora: 

Rute Simões Ribeiro é uma escritora portuguesa, nascida em Coimbra, em 1977. É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com especialização em Administração Hospitalar pela Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, onde desenvolveu um doutoramento em Políticas de Saúde e é investigadora. É mãe de dois filhos e vive em Lisboa. Foi finalista do Prémio Leya 2015 com o seu primeiro romance. 




Entrevista: 



Quando é que começou a escrever? E o que a fez começar a escrever?


A minha primeira memória sobre o meu percurso de escrita é um pensamento. Estava na casa dos meus avós e tinha terminado a primeira composição literária (e ingénua) de que me lembro, redigida e ilustrada numa folha dupla, de linhas, tamanho A5. Até tinha projetado na contracapa todos os títulos futuros da coleção (nunca cumpridos). Tinha apenas seis anos. E lembro-me tão bem de pensar que, quando fosse escritora, poderia dizer que tinha sido esta a minha primeira obra! Fui sempre escrevendo, mas, naquelas idades, nada de reparo, incluindo uma grande história de aventura, que escrevi e “passei a limpo” numa máquina de escrever, com grande esforço (mas muito afinco), aos 12 anos. Cansei-me de tal modo que, a partir daí, só escrevia poemas e contos, projetos que poderia concluir num dia, numa hora. Coisas sem valor literário ou minimamente estéticas. Mais tarde, estive muitos, muitos anos sem escrever praticamente. Acho que na experimentação da minha vida adulta não encontrei espaço para me recolher e escrever, ou sequer essa necessidade. É em 2011, com 33 anos, que acontece uma mudança importante, ainda que sem verdadeiras motivações, apenas circunstância e oportunidade. Foi numa noite sem sono, em agosto, numa altura muito difícil da minha vida (separar-me-ia no ano seguinte), pelas quatro, cinco da manhã, os meus filhos a dormir, numa casa de férias. Vi o computador na minha frente, puxei-o e depositei numa página e meia uma série de linhas experimentando esta interrogação que tinha há muito tempo (e essa não sei quando foi criada) sobre o que aconteceria se fôssemos forçados a escolher um só sentido. Nos dias seguintes, assumi uma sensação muito estranha, muito boa, de plenitude, de grande satisfação, de missão cumprida, sem muito francamente me arrogar ter um qualquer papel perante os outros (apenas em referência às minhas próprias circunstâncias). Depois, e na verdade, foi o meu trabalho enquanto investigadora que me reeducou no trabalho de paciência e de tolerância pelo tempo que as coisas levam. Já a disciplina que tenho agora no exercício de escrita nasceu de uma urgência, no dia em que a querida educadora do meu filho contou, numa reunião de pais tremendamente emotiva, que tinha cancro. Alguma coisa aconteceu e tive de interromper o que estava a escrever nessa altura (não o Ensaio, mas um outro) para me atirar a uma outra ideia que tinha e que se relacionava com o que tinha assistido. Em cinco semanas, escrevi um terceiro livro. Como se só depois pudesse recuperar o fôlego. Quando terminei, recuperei também a serenidade, mas ficou a disciplina. A profissão.

Qual o primeiro livro que se recorda de ler? E o próximo na lista?

Quando era miúda, devorava banda desenhada e os livros Uma Aventura. Ficava uma tarde inteira de cotovelos esgaçados sobre a cama, do princípio até ao fim do livro. Era a sofreguidão de acompanhar a história e o desespero de vê-la a acabar, porque sabia que tinha de esperar antes que se pudesse comprar outro. Li mais tarde (não sei se foi mesmo o primeiro dessa nova época de leitura) O Diário de Anne Frank, que me impressionou muito (a literatura a poder acompanhar a verdade era uma possibilidade que me transtornou desde aí), e um livro doloroso, que não sei quem ou por que mo deram (e não consigo recuperar o título), sobre um homem e um rapaz que viajavam pelo mundo. Passaram episódios terríveis e eu recebi tudo aquilo (não era a verdade, mas uma ficção muito exigente). Talvez por isso nunca tenha entendido a literatura como um entretenimento ligeiro (até na banda desenhada havia lições para a vida). Os livros são um sítio onde vamos ser agitados, não para passar o tempo. Mas não cresci a ler os livros que todos deviam ter lido “antes dos 25” (ainda bem, porque leio-os agora, com outra “lente” de que não teria sido capaz na altura).

Tenho um conjunto de livros que quero muito ler nos próximos meses (anos?) e, à medida que vou cumprindo, vou pondo à frente da lista dois ou três (que também vão variando, conforme a apetência que fica dos antecedentes). Neste momento, apetece-me muito ler A Maçã no Escuro da Clarice Lispector. Era uma mulher profundamente literária até na expressão da sua existência social. Era de uma tragicidade como se fosse ela própria uma personagem. Estava constantemente incomodada e essa agitação é invulgar (nunca serei capaz desse incómodo que ela tinha). Tenho também um fascínio pelo Valter Hugo Mãe e quero muito ler-lhe a Desumanização (que já vai em atraso). A Guerra do Fim do Mundo, do Mario Vargas Llosa, quero ler em breve, assim como as Cartas da Emily Dickinson. Nos momentos em que não procurava intencionalmente a estética, ela era maravilhosa, e gosto muito de ler o que vai na direção, na comunicação entre as pessoas, principalmente em contextos tão contidos, como era a época. A polidez da literatura comunicada é uma delícia.

Quais os seus livros preferidos e autores?

Odiei e adorei o remorso de baltazar serapião, do Valter Hugo Mãe (quem tiver lido, sabe do que falo). Zanguei-me com ele, mas acabei-o reconciliada. Tenho um profundo respeito pelo Gonçalo M. Tavares e acho que é realmente o melhor “de nós” (vá, vou colocar-me no grupo contemporâneo). O José Saramago foi o escritor que nunca mais haverá (gostei muito, muito d’As Intermitências da Morte – que lia eu quando morria ele). A Agustina Bessa-Luís é obrigatória. Entre os não portugueses, tenho uma grande preferência por Camus (em particular, O Estrangeiro e A Queda) e por Sartre (pela sua Náusea). A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, é formidável. Haverá outros. Mas tenho de dizer ainda dos Capitães da Areia do Jorge Amado, um livro de uma simplicidade e de uma estética literária que se extrai por detrás das palavras. Nesse livro, percebi que as palavras não são tudo. Quem diria.

Qual a melhor companhia para um livro? O café, a praia, o quentinho do sofá?

Preciso de ler com o mínimo de interrupções possíveis e podendo projetar a disponibilidade por algumas horas seguidas. É quase uma atividade profissional (mas desempenhada com grande motivação do trabalhador – profissional liberal, claro). Gosto do clássico: ler na cama, à noite, ou numa (longa) manhã de fim de semana, a ouvir os ruídos distantes da casa ou da rua. E adoro ler numa rede velhinha, velhinha, que já me acolhia em bebé, pendurada agora numa amendoeira na casa dos meus avós paternos. Vejo em cima as folhas e os ramos sobrepostos ao céu, os pássaros por ali, sinto os ventos mornos e ali fico horas (e adoro ler um livro num dia só, como fazia em garota). Nunca leio nos transportes, ou ao café e muito raramente na praia. Distraio-me demasiado. E, nesses momentos, não desperdiço o que está a acontecer à minha volta, a forma como as pessoas se relacionam, a expressão das pessoas sozinhas, os movimentos (que armazeno). Às vezes, parece que nem sou vista, estou invisível (se agarro um livro, perco a minha capa). 

Ensaio sobre o Dever (ou a manifestação de vontade) parte de uma premissa muito sui generis, como surgiu a ideia?


Francamente, não consigo localizar-me no momento em que a ideia apareceu. É possível que tenha acontecido como aconteceu com as ideias para os livros seguintes, que já recordo. Numa ideia que passa, enquanto observo alguém, num fim de frase que apanho no ar, ou a propósito de uma pergunta de alguém, de uma resposta minha, de uma graça irónica sobre uma situação hipotética, e que depois concretizo como base de uma história. Ou até numa notícia que aparece no jornal, na televisão, ou no feed de notícias das redes sociais (que são, de facto, fontes de três dos meus livros – um concluído; um a escrever-se e outro que há de ser). É bem possível que a ideia do Ensaio tenha surgido na sequência da leitura do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, ainda que não recorde o momento exato. É uma obra fabulosa sobre o teste das civilizações. Gosto disso: de testar a sociedade, as dinâmicas grupais, as reações individuais. É sempre a resposta à pergunta “E se?”.

Como tem sido a reacção dos leitores ao seu livro?

Os amigos não contam (apesar de só dar a ler-me àqueles que sei que serão honestos e verdadeiramente crus nas suas opiniões) e, por isso, quando recebi as primeiras críticas dos leitores que me desconheciam de todo, fiquei muito contente (e grata), porque não há nada pior do que ser incompetente naquilo que adoramos (precisamos) fazer. Têm comentado o livro de forma muito positiva e manifestado a surpresa pela publicação independente. Depois, é muito engraçado receber interpretações de aspetos do livro, que não foram intencionais. Respeito muito isso. Devo dizer que a generosa disponibilidade dos leitores/críticos na dedicação a um livro e a um autor desconhecido deixa-me acreditar na permanência do verdadeiro sentido do que deve ser um editor. 

Que sentido escolheria?

Pensei nisso várias vezes enquanto escrevia o livro e, de vez em quando, alguns anos passados sobre a sua conclusão, ainda me chega o exercício à memória. Nunca consegui determinar-me numa solução. Mas fico mais tranquila quando imagino permanecer o som. Poderei fechar os olhos, não tocar em nada, não alimentar-me, não ter nada em volta para cheirar, e talvez possa recriar, ficcionar um ambiente completo. A presença do som é que seria verdadeiramente insubstituível. Penso nas vozes dos meus filhos, no som das folhas das árvores, na música, e não consigo dispensá-lo. Até o silêncio tem réstias de sons. Quando me imagino vendo tudo sem som, sinto uma solidão atrofiante.




Encara Ensaio sobre o Dever (ou a manifestação de vontade) como um aviso quanto ao rumo da sociedade em que vivemos?


Não comecei a escrever o Ensaio pensando nas “lições”, nas “dicas” que nele haveria de inscrever. Começou de facto por ser uma resposta, que fui elaborando, sobre “E se tivéssemos de escolher um sentido”. A ideia não começou sequer pela obrigatoriedade da escolha. Mas, escrevi-o efetivamente ao longo do período troika e é verdade que fui para lá atirando indignações. Foi assim que se foi formando. Tornou-se político, quando nunca começou por sê-lo. Mas também assim são as nossas manifestações em sociedade. Zangamo-nos nas circunstâncias que a isso nos levam, quando nem isso prevíramos. Há muitas referências no livro a muitas coisas que aconteceram na altura (e não precisa por isso de ser um aviso, pois metaforicamente quase tudo aquilo aconteceu; deverá ser sabido). Algumas serão reconhecidas por uns, outras por outros. Não é óbvio. Depois havia coincidências engraçadas, que eu deixei ir. O Plano no livro que tem também a sigla PEC foi completamente inintencional. Quando dei conta, ri-me e deixei seguir.

Sendo a sua escrita muito influenciada por Saramago não sentiu que fosse um risco aproximar-se do nosso Prémio Nobel?


Não considerarei nunca um risco ver a minha escrita aproximar-se da de Saramago. Será sempre um elogio. Aconteceu com muitos escritores sentirem o tom da sua escrita acompanhar o dos autores que preferem ou o dos que liam no momento. Também é verdade que a técnica evolui (como em qualquer arte) e com o tempo vamos conseguindo independentizar o nosso estilo, ele forma-se, distingue-se e não precisa de mais sopro para ser o que é. Escrevo, neste momento, o meu quarto livro e noto uma forma de escrever que se distancia dos anteriores, inclusivamente do último, em que considerei ter alcançado a estabilidade do meu estilo. Afinal, não é verdade. Ainda se forma. Ou então alterna-se. Não tenho como saber, a não ser seguindo e assistindo.

Já alguma vez se deparou com alguém a ler o seu livro? Como reagiu?


Já me deparei com alguém a procurar por ele, numa livraria. Reconheci a pessoa, mas não me dirigi a ela, porque vi que estava a falar com o livreiro e não quis incomodar (nem invadir a privacidade das suas escolhas literárias..). Uns dias depois, encontrou-me e contou-me que tinha tentado comprar o meu livro (no exato local onde a tinha visto), mas que não o encontrara. Achei muito engraçado, mas fiquei sem saber se devia ter confessado que a tinha visto. Não disse. Saberá agora, parece.

Considera que se aposta devidamente nos autores portugueses ou que as editoras tem deixado escapar ou não dão a devida atenção e visibilidade a bons livros escritos por pessoas desconhecias?

Tenho a certeza de que se há por aí um escritor extraordinário que poderá ser o maior da sua geração, ninguém o vê. Não sei o que aconteceu, porque não me arrogo elaborar sobre os compromissos das editoras, mas as respostas que dão a quem as procura denunciam a indisponibilidade para ver o que anda por aí (para ler sequer um parágrafo). Depois, as novas propostas podem não ser comercialmente interessantes, mas penso que se subestimam as preferências dos leitores. Na falta de potencial comercial, pelo menos no início, talvez deva pensar-se sobre novos modelos editoriais (e de marketing) que permitam a exposição de novos autores, sem pôr em risco a sustentabilidade das editoras. Também não sei a solução, mas a figura do velho editor que pega num manuscrito que lhe entregam indistinto, com remetente de nome desconhecido e desinteressante, e que, num cadeirão de pele, à janela, segura um charuto e com todo o tempo do mundo, como se mais nada houvesse para fazer, lê as primeiras páginas e, sendo estas apelativas, as seguintes, penso que já não existe. É mais ou menos assim que imagino o trabalho de um editor, mas não é nada disto, pois não? Talvez devessem abrir candidaturas para “Editores-Leitores-Que-Não-Poderão-Fazer-Mais-Nada-Para-Além-De-Ler-Primeiras-Páginas”.

Quais são os seus projectos para o futuro?

Publicarei, também de forma independente, no início de 2018, o meu segundo romance, A Alegria de Ser Miserável. O terceiro (aquele escrito em urgência) está em revisão. Tenho um projeto de contos, que explora a humanidade (somos fugazes neste mundo e estamos demasiado entretidos com as convenções, nem vemos como mal existimos no tempo e no espaço que está para além de nós), que pensei que assumiria quando terminasse o anterior projeto. Mas, numa das fugas do meu doutoramento, iniciei sem que o tivesse antecipado um quarto livro. Vi aquela notícia no jornal e disparei uma dúzia de linhas. Pronto, podia respirar. Não sei que dimensão tomará (se um conto, se um romance, se uma peça de teatro), mas vou por aqui afora. Neste, estou posicionada (tanto nas personagens como no narrador) de modo diferente do que já fiz até agora. E isso está a testar-me na capacidade de desenvolver hipóteses (e se’s) em formatos e perspetivas que ainda não tinha explorado. Parece que não me aborrecerei, afinal.


Agradecemos à Rute Simões Ribeiro por se ter disponibilizado para responder a esta entrevista.
Desejamos-lhe as maiores felicidades e sucesso!

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