Sinopse
«Há dezassete dias que não durmo.»
Assim tem início a história que Haruki Murakami imaginou e escreveu sobre uma mulher que, certo dia, deixou de conseguir dormir. Pela calada da noite, enquanto o marido e o filho dormem o sono dos justos, ela começa uma segunda vida. E, de um momento para o outro, as noites tornam-se de longe mais interessantes do que os dias... mas também, escusado será dizer, mais perigosas.
Opinião
Comprei este livro por se terem juntados três motivos que me pareceram muito válidos: o livro é esteticamente muito bem conseguido, possuindo uma robusta capa dura e ilustrações maravilhosas, o preço apetecível a que o encontrei pesou muito na minha veia consumista, e o autor, Haruki Murakami, do qual nunca havia lido nada, no entanto, estava curiosa por ler algo deste escritor japonês contemporâneo tão aclamado pela crítica.
Murakami conta-nos em Sono a estranha história de uma mulher, da qual nunca vimos a saber o nome, o que sempre me agrada, a despersonalização, como se esta mulher pudesse ser qualquer pessoa. A protagonista não só não dorme há 17 dias como não tem sono ou qualquer sintoma de exaustão, pelo contrário, passa a ocupar a sua noite com actividades que há muito tinha esquecido gostar de fazer e que a definiam. Presa à vida monótona e rotineira e às obrigações familiares vivia de forma mecânica, como de resto vivemos todos ou quase todos, e de certa forma a insónia acordou-a para a tomada de consciência de que vivia inconsciente.
O acto de dormir surge assim, provavelmente na perspectiva do autor, como um mecanismo reparador que apazigua as inquietudes, que nos impede de sair da Caverna de Platão e de ver para além das sombras, que nos desliga e nos mantém neste torpor onde estamos emersos.
Vivemos inconscientes, e talvez seja essa a única maneira de suportar a vida. Dar de caras com uma existência sem sentido, com o absurdo de Camus é demasiado assustador. Talvez seja melhor dormir e desfrutar a inocência de viver sem analisar de Bernardo Soares.
A insónia funcionou como uma falha no sistema que nos impede de ver que a realidade é tão-somente o que conseguimos abarcar, uma falha no sistema que nos mantém como peões num jogo de tabuleiro, cujas regras desconhecemos, manuseados por invisíveis mãos que ao longo dos tempos têm pertencido a diferentes Deuses.
Sono é assim uma leitura interessante com nuances de ensaio filosófico, uma espécie de conto meio surrealista meio fatalista, em que a protagonista se abstrai tanto da realidade que talvez tenha alcançado a transcendência. Acredito que esta seja uma leitura aberta a outras interpretações, e que por isso não seja um entretenimento para um público geral.
Muitos leitores não gostaram do final por ser demasiado abrupto e aberto, inicialmente também eu procurei as páginas que achei estarem em falta no meu exemplar, mas depois de reflectir aceitei que o fim seja mais óbvio e linear do que aparenta, já que a única maneira de sobrevivermos e a única existência que nos foi permitida é aquela que conhecemos e mesmo após breves laivos de lucidez sabemos que é melhor cair no sono e dormir.
Termino com uma passagem do Livro do Desassossego de Bernardo Soares que durante a leitura me surgiu de imediato no pensamento.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.
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