“Na manhã em que levei a minha avó a enterrar, há muito que ela me tinha morrido. Somente o seu invólucro entrou na terra. Foi vazio de histórias. De um segundo para o outro, até de respirar o corpo se esqueceu. Largado esse hábito, libertou-se de tudo.
Morri eu primeiro, morreu o seu filho, morreram as pessoas e os lugares e as palavras. Morremos nós, antes dela. Morremos nas conversas e num momento único e em queda, sem amparo. Viver até tarde tem um custo elevado: vemos desaparecer a família, amigos, conhecidos, até que o círculo se fecha.
O último a morrer será o último a lembrar e a esquecer. Tinha esta certeza até ver uma doença desfazer a sua memória. Ela era apenas um bebé velho com o tempo marcado na pele e o hálito da morte em cada movimento e em cada nome esquecido. A vida foi-se esfiapando e com isso desapareceu quem lhe ocupou a infância, a juventude e os anos antes da extremidade da vida. Desapareceram um a um, com drama, sem drama, de doença, por acidente, apagados linha a linha. Somos feitos de histórias e desaparecemos se nõa há ninguém para as contar.”
Mário Rufino, Cadente
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